Quando o homem branco levou um rádio de pilhas para mostrar à tribo dos pigmeus, na África, na tentativa de agradá-los com essa maravilha da nossa tecnologia, os nativos comentaram: "Infeliz do povo que não sabe fazer sua própria música".
Aqui em Brasília, durante muito tempo, quem andava de ónibus não pode ter deixado de conhecer o Zé da Arnica. Ele entrava no Grande Circular, quando este ainda não estava lotado e os passageiros viajavam confortavelmente sentados, se aboletava lá na frente, com uma sacola cheia de chumaços de arnica, já seca, pronta pro chá, e começava sua cantilena:
- Olha a arnica, quem vai querer?
- Arnica é bom pra dor de perna, bom pra dor de braço, bom pra dor de joelho...
E, na medida em que o carro ia acelerando a marcha, acelerava também sua fala propagando as propriedades curativas de seu produto:
- Bom pra dor de cabeça, bom pra dor de barriga, bom pra dor de dente, bom pra espinhela caida...
Depois de um certo tempo, levantava-se e ia distribuindo, a todos, sem exceção, um macinho daquela panacéia. Para os que se faziam de desentendidos e não estendiam a mão aceitando sua oferta ele insistia dizendo:
- Segura aí, não morde não...
Em seguida, voltava lá pra frente e anunciava que gostaria de receber um dinheirinho em troca daquele remédio, tão eficaz, da nossa flora medicinal. Dizia que qualquer trocado tava bom, e prosseguia ritmadamente como se recitasse uma poesia:
- Se não tiver trocado, pode ser graúdo...
- Se não tiver graúdo, pode ser em cheque...
- Se não tiver cheque, pode ser cartão...
- Se não tiver cartão, pode ser Vale Transporte...
- Se não tiver Vale, pode ser ticket refeição...
Daí, saía recolhendo o que lhe davam de boa vontade. Mas, se alguém ameaçava devolver o santo remédio ele persistia perguntando:
- Você não tem aí um trocadinho pra me dar, não?
Caso a resposta fosse negativa, ele observava bem as vestimentas e os adornos do freguês e continuava tentando, conforme o jeitão de cada um:
- Pode ser a pulseirinha, também serve...
- Pode ser os óculos, também serve...
- Pode ser o tenis, também serve...
- Pode ser a blusa, também serve...
Ao ver uma garota bonita usando essas blusinhas bem curtinhas, chamadas de "top", Ã s vezes ousava, com bom humor:
- Pode ser o "surtian", também serve...
Meu filho, um dia, estava viajando ao lado de uma amiga que, por ter tirado nota baixa numa prova, estava mais jururu que político quando perde eleição. Zé da Arnica passou por ela, reparou bem o semblante da moça, e soltou essa lição de vida:
- Pode ser um sorriso, também serve...
Há muitos meses Zé da Arnica não aparece mais nos transportes coletivos da cidade. Ouvi dizer, pelos butiquins da vida, que ele morreu. Mas os jornais locais não falaram quase nada sobre sua falta (se é que falaram alguma coisa).
Infeliz da cidade que não sabe homenagear seus tipos populares.
Do livro "O Cameló da Cultura" (Litteris Editora - Rio de Janeiro, RJ)
Pedidos para o autor via e-mail.