Admiro profundamente aqueles que morrem de amor. Morrer de amor não significa morrer fisicamente, embora muitas vezes isto ocorra por suicídio ou melancolia.
No primeiro caso, tirar a própria vida, seria o ato extremo do desespero,que eu não considero loucura e nem covardia, porque ninguém sabe o que vai dentro de cada um.No segundo -melancolia, tristeza -, por favor não me tomem por sádico, mas acho até belo. Foquinha, quase octogenário, meu amigo foi caso típico de morte de amor por melancolia. Quando a mulher, com a qual estava casado havia mais de cinquenta anos, deixou este mundo, ele não aguentou o baque. Os filhos bem que tentaram animá-lo. Deram-lhe apartamento novo, num outro bairro distante de onde morava com a amada. Queriam porque queriam devolver ao pai o que aquela ausência lhe roubara. Foquinha era apontador do jogo-do-bicho, embora não precisasse. Alegre. Fanático por futebol, em especial o seu Corínthians. Largou de escrever apostas, não falou mais de futebol, deu de beber mais do que já bebia. Até que o encontraram morto no apartamento. O coração não suportou a viuvez, e deixou de bater naturalmente. Registre-se: o bom homem tinha rosto uma expressão feliz.
Mas a morte de amor a qual me refiro é outra. Falo de morrer e continuar vivo. Falo de morrer no sentido de renunciar ao mundo, trancar-se no porão de si mesmo e deixar o tempo passar. Santa Teresa de Ávila, que sempre venerei, não tanto pela santidade, mas pela mulher que foi, em especial como escritora, admirada até hoje inclusive por não cristãos e ateus, como o escritor José Saramago, ingressou na vida religiosa porque, na adolescência, teria se apaixonado por um primo próximo. O pai, homem bom, porém austero, colocou-a sob os cuidados das freiras agostinianas, temendo o que, para ele, pudesse vir a ser a desonra da família. Teresa era bela, inteligentíssima e devoradora dos romances de cavalaria, gênero bastante apreciado no século em que viveu, o XVI. Ela mesma confessa em seu livro mais famoso, Vida, que até aos 40 anos fora uma monja relapsa e medíocre. A vocação mesmo só lhe veio mais tarde, quando saiu pela Espanha, enfrentando a tudo e a todos, para fundar dezesseis conventos, entre femininos e masculinos, todos obedientes à regra primitiva do Carmelo, que se encontrava extinta. A Ordem dos Carmelitas Descalços (OCD), entenda-se frades e freiras carmelitanos, sobrevive até os dias de hoje graças a Teresa e ao seu amigo e colaborador mais próximo, o frade e também escritor São João da Cruz.
A irmã mais velha, do total dos vinte e dois irmãos que teve minha avó materna, também morreu de amor, embora tenha continuado viva até aos 90 anos.Chamava-se Belmira, nome pior não lhe poderiam ter escolhido. Na juventude, apaixonou-se, na pequena Batataes, interior de São Paulo, cidade onde nasceu e da qual nunca saiu, por um rapaz de origem espanhola chamado Romão, cujo irmão viria a ser pai natural de um político, já falecido, com uma empregada da família, que fora enviada ao litoral, por motivos óbvios, para dar à luz ao rebento que se tornaria famoso. Mas isto não vem ao caso, contei apenas para temperar esta história, louca nos dias de hoje.
Belmira e Romão amavam-se, fato inconteste. Meu bisavó, barão do café, que nunca fez nada na puta da vida, além de filhos e jogar carteado, não aprovou o romance. E naquele tempo o não paterno era não. E não se discutia.Uma exceção à regra foi a poeta goiana Coral Coralina, que na verdade chamava-se Ana. Cora não abriu mão do seu amor, homem mais velho e casado. E fugiu com ele.Coisas de Ana, que também pagou alto o preço da sua ousadia. Tornou-se Cora, de coragem, e Coralina, de coração, porque o marido não a queria escritora. Assim, a menina Aninha só teve os seus versos publicados depois de viúva.
Belmira nunca escreveu versos, Romão jogava futebol, e esta atividade era o bastante para macular o brasão da tradicional família.Diante da proibição paterna, Belmira e Romão firmaram pacto: jamais teriam outro amor na vida. Ela cumpriu, ele não. Belmira conservou-se casta, praticamente reclusa no casarão da Praça João de Andrade, não abandonando-o sequer para ir à residência ao lado, onde morava uma de suas irmãs. E só não morreu lá porque a irmã mais nova, fazendeira riquíssima, que adquirira o imóvel centenário, achou por bem pó-lo abaixo tão logo soube do interesse do Património Histórico em tombá-lo. a ignorãncia age sempre assim: melhor deixar um terreno abandonado a vê-lo transformado num centro cultural, biblioteca - para que bibliotecas? - ou qualquer outra coisa a serviço da comunidade.
Belmira morreria pouco depois da queda do casarão.Lembro-me dela muito bem. A cabeça sempre coberta por um lenço branco, transformado em turbante, talvez símbolo de sua castidade. Como não saísse e nem tomasse sol, o rosto, só lavado com a água escorrida do arroz, era de criança. De vez em quando cometia seu excesso: chamava um moleque da sua confiança e pedia-lhe que fosse à sorveteria do Faraco, em frente ao casarão, comprar-lhe uma garrafa de cerveja, que ela sorvia em pequenos goles encostada ao fogão ao lenha. Fazia um divino virado de abobrinha com farinha de milho como ninguém. Nunca a ouvi pronunciar o nome do falecido Romão. Talvez o retrato do do pai, com seu vasto bigode, na sala de visitas, ainda a amedrontasse. Ah, se eu me encontrasse com Jesus Cristo, não tenham dúvida: pediria a ele que acrescentasse mais uma bem-aventurança em seu Sermão: - Bem-aventurados os que morrem de amor, porque são mais puros do que os puros, e portanto têm trànsito livre em todos os cantos do Reino dos Céus.
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júlio
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