Rio de Janeiro. Calçadão do Corretor Cultural da Cinelàndia. Quatorze horas, dia ensolarado de primavera. Um copo de chope gelado transpira alegria ora em levantamentos alentadores, ora dormitando sobre a mesa de ferro, sem tolha. Jairo César, branco branco, olhos verdes, cabelos loiros, bem sucedido profissionalmente, petisca cubos de queijo macios e azeitados, um ou outro salame regado com limão-galego.
Voam seus pensares. Sente saudade da infància, pobre, mas digna, da adolescência, das descobertas da juventude, dos amigos verdadeiros de ontem. Saudade, especialmente, de três deles: Juninho, o músico evangélico e bisneto de escravos, o menino que distava dos arroubos da juventude, auto-internado em seu monastério povoado de acordes, tons, semínimas, dissonantes e pausas. Discriminado, achincalhado por todos os falsos amigos, mais interessados no resultado imediato, comportamento típico dessa mesma juventude. E daí? Que rissem dele, pois não se abalava. Dedicava-se a aprender a tocar seu oboé velho, descascado. Juninho foi um obstinado, um menino-homem honesto e educado, perseverante na busca por um espaço na sociedade, sua vida era pautada na evolução. Também pobre, aliás, mais pobre do que todos os outros, por isso, um bravo a dominar seu destino, a mais perfeita concretização do ideal.
Sebastião Severino Rufino Júnior era um neguinho franzino e divino. Seu melhor amigo foi um lindo negro, de corpo, de coração. Podia assegurar-lhes que se fosse branco, rosa, verde ou azul, também seria grande, afinal, grandes homens não têm cor, têm alma. "Saudade de você, Juninho!"
Nesse instante de divagação, aproximou-se um homem de meia-idade, com dois copos de chope gelado e depositou um deles à sua frente. Puxou uma cadeira e sentou-se. Não teve dúvidas, era um dos irmãos a que o pensamento fazia alusão: o Negão. Ele e seu irmão Neguinho eram os dois que faltavam para completar a trilogia dos amigos que justificariam as lembranças num dia quente de sol.
Bem trajado, de terno azul-marinho de belo corte, Negão estendeu a mão, depois os braços e, em gesto recíproco, abraçaram-se saudosos e sinceros. Contou-lhe que saiu da favela onde morava, a Cabeça de Porco, e ganhou mundo. Estudou como póde - em dignas e maravilhosas Escolas Públicas de outrora, quando alunos passavam porque aprendiam e mereciam, e não para satisfação enganosa da metrópole que exige números, sem se preocupar com a formação da cidadania - e sobrevivia da arrecadação da venda de balas e amendoins nos trens da Estrada de Ferro Central do Brasil. Agora era advogado requisitado, sem tempo disponível para novos clientes. Seu irmão, o Neguinho, concluiu os estudos com sua parca ajuda e hoje trabalha no Serviço Público como Técnico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Após mais dois chopes, despediram-se com outro e mais forte abraço. Entregou-lhe seu cartão, sorriu e disse que sempre haveria um tempo livre para ele. Jairo arriscou chamá-lo de Clarimundo, mas Negão era Negão. Dr. Clarimundo era tratamento formal reservado aos que dele necessitavam e aos que os respeitavam embora ainda se surpreendessem com um negro de sucesso. Para o irmão espiritual não, ele sempre seria o AMIGO Negão.
Levantou-se, caminhou até o Passeio Público e fez assento num banco de madeira, pintado de verde, e umedecido pelas gotículas do chafariz mais atrás. As águas que lhe escorriam pela face misturavam-se com as aspergidas pelo monumento numa confusão aquosa que lavava seus pensamentos.
Principiou a questionar o motivo das lutas cruentas por liberdade, dignidade e democracia. Sentiu pena dos desafortunados que perderam suas vidas por um país e uma sociedade hipócrita que desmerecem seus martírios e os envergonhariam se vivos fossem. Por certo, cada um desses idealistas não entenderia os patrulhamentos ideológicos, promovidos pela corrupção e pela incompetência na gestão pública. Não há uma negação da democracia, o que falta é a liberdade apregoada e decantada pela própria democracia.
Não se pode perdoar o racismo, a discriminação ou qualquer outra forma de segregação. Não se pode perdoar a ofensa gratuita, a entonação jocosa e agressiva contra quem quer que seja: branco, negro, homem, mulher, gay ou lésbica; cristão, judeu, muçulmano ou kardecista; rico, pobre, nobre ou plebeu. Que não se tolere a injúria, a difamação, o ataque contra a moral, a ética e o ser honesto. Que se cerrem as portas dos elevadores de serviço para o funcionário ou visitante mais humilde como se fossem fardos humanos, antes, num gentil ato de fraternidade e carinho, que se abra a porta da frente quando estiverem carregando os dejetos que os tornam iguais. Que não se parem os aviões por causa de turvas e efêmeras estrelas, mas que os deixem voar perto das brilhantes e verdadeiras estrelas do universo. Que não se banhem, nas piscinas dos clubes privados, fora do horário permitido, não apenas o associado mais humilde e iletrado, mas também o juiz togado com status de Deus.
E que concedam a todos o direito inalienável de amar seus amigos: Juninho, o músico, o negrinho brilhante a iluminar uma noite sem luar; Clarimundo, o bom e respeitável Dr. Negão; seu irmão Jonas Eduardo, o Neguinho atencioso, merecedor do instinto prêmio: "Funcionário Padrão". E que todos os negões e branquelos, hetero e homossexuais, judeus e muçulmanos não sintam júbilo por terem vencido por intermédio de privilégios discutíveis, mas que se irmanem como ecumênicos seres humanos. E, sobretudo, que não calem a voz dos que não entendem ou participam de vazias discussões preconceituosas ou caçadoras de votos.
Ser branco ou negro é acaso que não desmerece a existência; ter um coração sem cor, é privilégio dos homens dignos.