Um dos hábitos mais recentes no que se refere ao churrasco dominical é o consumo de coração de galinha. Haja galinha para tanto coração. É importante lembrar que as galinhas nascem e se desenvolvem por inteiro, incluindo cabeça, pés, moela, coração, fígado, entre peitos e coxas. É bem verdade que há quem negue que galinhas têm pés, mas elas têm e geralmente são dois. Têm cabeça também, embora seja inútil como a maioria e sequer permitam o uso de chapéu, mercê da crista.
De fato, pensando bem, poderíamos ter criações do que poder-se-ia chamar de galinha seletiva ou "chicken on demand". Nesta técnica os corações seriam criados separadamente em viveiros apropriados. Da mesma forma coxas, sobrecoxas, peitos e moelas, cada um segundo a necessidade do mercado e em ambiente próprio. Os corações teriam uma ração mais adequada, evitando aquelas gorduras desagradáveis que exigem a intervenção do assador, já traumatizado com a tarefa de espetá-los. Neste item talvez com um pequeno investimento em pesquisa, poder-se-ia ter algo como o coração já espetado, poupando a paciência de tantos quantos se dediquem ao churrasco dominical. Mas isto tudo é para o futuro.
Pois bem, se os corações de galinha são a alegria da criançada, de certa forma é o suplício dos assadores, condenados a espetar milhares de corações de galinha em espetos finos que furam os dedos.
Claro que há churrasqueiros que apreciam a tarefa. Alguns como uma provação, expiando os pecados semanais o que não raro é até barato. Outros encaram a tarefa como algo por que se tem que passar, resignando-se. Há ainda os de espírito esportivo que encaram a tarefa como um desafio de agilidade, ficam medindo a velocidade com que espetam e o índice de rejeição. Orlando, um garçom amigo, diz que consegue espetar até três mil corações por hora e ainda neste período, apresentar alguma proposta sobre o impasse com a Coréia do Norte. Por algum motivo que não revela, Orlando tem uma preocupação com a questão da Coréia do Norte. Não sei se pegou nojo do ditador de plantão ou que outro motivo terá ele para tanta preocupação. Ele não explica, limitando-se a propor soluções. Mas ninguém ouve, nem no sul, nem no norte. É uma pena.
De qualquer forma, o coração de galinha tostado e passado na farinha de mandioca crua constitui um bom aperitivo enquanto se espera o churrasco de verdade. Quando não há ninguém olhando pode-se passar o coração na maionese da salada de batatas. Mas cuidado, sempre há um chato a delatar estes pequenos deslizes.
Calam sobre o arsenal nuclear americano, o trabalho escravo, o excesso de velocidade nas pistas esburacadas, a chantagem norte-coreana, os desmandos da ditadura de tantos lugares, mas ficam aí a denunciar os pequenos deslizes dos amigos.