Quando pela primeira vez entrei num liceu, por volta dos meus onze anos e pico, passados uns dias o meu professor de Português, Padre Albino, apresentou-me esta eventual foto de Miguel Cervantes, perguntando-me se eu sabia de quem se tratava. Então e espontâneo, convencido que iria acertar em cheio, respondi asneira num ápice: Dom Sebastião! 
 
 
 
Passados quase 55 anos, meditando sobre o episódio que memorizei solidamente, constato que, em relação à época, até nem estive demasiadamente asneirento... Pois não, amigo e benquisto Sancho? 
 
  
 
GENIAL SOBREVIVENTE
 
 
Da vida em seus ofícios
 
O saco da desventura
 
É que resguarda dos vícios
 
A alma da criatura
 
Permitindo que o talento
 
Da morte se faça isento
 
E não desça à sepultura
 
 
Como a morte não tem cura
 
A vida é uma jangada
 
Permanente e insegura
 
Sempre mais superlotada
 
À deriva na corrente
 
Onde tanta-tanta gente
 
Desliza sem dar por nada
 
 
Dura-dura e assaz penada
 
Levou Cervantes a vida
 
Em pedregosa calçada
 
Entre sonhos sem saída
 
Atido à triste figura
 
Da sombra que em vão procura
 
Ajuízada guarida
 
 
Dulcineia a dama ungida
 
Pelo amor imaginado
 
Existia enobrecida
 
Sobre o trono destronado
 
De um fidalgo cavaleiro
 
Sem castelo e sem dinheiro
 
Que não pagava ao criado
 
 
Fabuloso e bem contado
 
Por quem à pele a desgraça
 
Fez de calo amargurado
 
O seu escrito ultrapassa
 
A solidão do deserto
 
Pra ficar assim tão perto
 
De cada dia que passa!...
 
 
BIOGRAFIA
 
 
Os relatos históricos consideram que a vida de Miguel Cervantes foi uma amálgama de desventuras e atribulações, o que terá influenciado para que se tivesse refugiado na literatura, quiçá único território onde porventura logrou ser feliz.
 
 
Nasceu em 1547 em Alcalá de Henares e passou a maior parte da sua mocidade entre Madrid, Valladolid e Sevilha. Aos 24 anos alistou-se nas hostes de Filipe II, tendo sido ferido numa escaramuça contra os turcos. Capturado por piratas argelinos, foi vendido como escravo ao rei de Argel, ao qual serviu durante 12 anos.
 
 
Regressou a Espanha em 1587 e desde logo tentou, mas sem êxito, impor-se através da produção literária, o que obrigá-lo-ia a viver dos mais diversos expedientes.
 
 
A sua sorte deu sinal de querer mudar quando foi nomeado corsário real, missão que o encarregou de colectar azeite e cereais a favor da constituição da Invencível Armada, a gigantesca esquadra marítima que o rei criou com vista a conquistar a Inglaterra.
 
 
Entretanto o infortúnio voltou a apoquentá-lo de novo em 1592, tendo-se deixado enganar por companheiros fraudulentos. Por não ter conhecimentos de matemática com que deslindasse o imbróglio contabilístico de que era principal responsável, seria preso e acusado de roubo.
 
 
Desencantado, dedicou-se então integralmente aos livros, a sua verdadeira obsessão. Todavia, o primeiro grande sucesso que a sua obra "Dom Quixote" alcançou em 1605, foi ensombrado pela falsificação do seu celebrizado escrito, feita por um tal Alonso Fernandéz Avellaneda, o que originou que só dez anos mais tarde o grande escritor publicasse a segunda parte da saga quixotesca. 
 
 
Miguel Cervantes, como tantos outros vultos da literatura, morreu em 1616, então com 68 anos, abandonado e totalmente ignorado.
 
 
Torre da Guia = Portus Calle
 
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