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Contos-->*** A INVASÃO DO ESPAÇO *** -- 31/10/2003 - 09:40 (José Alves Garcia Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um misto de indignação e raiva foi tomando conta dele. Seu rosto ficava vermelho enquanto apertava a mão contra o abdome tentando aplacar a dor quente que irradiava a partir da úlcera nervosa - uma das suas últimas aquisições.
Esse é Jorge Márcio Verídico, que prefere ser chamado apenas de Verídico. Cidadão comum da cidade grande que dedica parte do seu tempo ao trabalho voluntário em Comitês de Cidadania e, preocupado com a poluição eletromagnética, nem imagina aonde vai levar sua pesquisa, quando começa a conhecer os riscos do avanço desregulamentado da biotecnologia.
Saber que o condomínio em que morava havia realizado uma assembléia sem convidá-lo e, além disso, tinha aprovado a instalação de uma antena de microondas para telefonia celular, exatamente no Bloco D onde ele mora, havia extrapolado todas as razões para manter o controle de si mesmo e explodiu:
- Porra nenhuma!!! Nenhum síndico "de merda" vai ganhar dinheiro às custas da minha saúde, muito menos aprovando medidas suspeitas em assembléias inconstitucionais que ferem, diretamente, o direito do cidadão.
Ele não é advogado mas gosta de falar como se estivesse no tribunal, cercado por egrégios juizes, nobres colegas, distintos jurados e interessados cidadãos. Mesmo naquele acesso de raiva misturava gíria de cabaré com o palavreado forense.
Divorciado, pai de um casal de filhos já criados, 49 anos, boa cultura, funcionário público que saiu do centro da cidade e foi morar em bairro mais afastado, aproveitando o conforto do metrô e a pouca valorização imobiliária; um dia, de repente, acordou sua consciência cidadã e achou que deveria fazer diferença no mundo. Queria saber dos movimentos de base sindicais, religiosos; compreender a evolução do pensamento político entre seus companheiros de trabalho; o funcionamento das Organizações Não Governamentais, o chamado Terceiro Setor; o valor do trabalho voluntário na transformação social da periferia; a capacidade de destruição da camada de ozônio pela flatulência dos rebanhos de ruminantes; a relação dos movimentos magmáticos e sísmicos com a capacidade de mobilização da ajuda humanitária e, finalmente, a influência da conjunção dos astros no destino das pessoas já que, das promessas de um mapa astral que lhe fizeram, nada lhe aconteceu.
Quando contou no trabalho que estava liderando um movimento contra a instalação de antenas de microondas, se tornou o alvo das piadas da semana, mesmo porque, muito próximo à repartição pública em que trabalhavam, havia uma dessas antenas instaladas há vários anos.
- Depois de impedir a instalação no condomínio, vou mandar tirar essa daqui também. - vociferava ele. - Essa parafernália cibernética é causa de vários tipos de câncer, afeta a memória, a temperatura do corpo, a capacidade reprodutiva, pode ser responsável pelos fetos anencéfalos, gestações de duas cabeças e vai saber mais o quê!...

Verídico tinha tecnofobia, então só usava relógio de corda ou automático, que também é um tipo de corda. Relógio de quartzo nem pensar - isso é coisa para esses alienados ridículos - dizia ele. Quando instalaram computadores na Repartição, ele os rejeitou pela máquina de escrever durante anos, até que não tinha mais assistência técnica para sua Olivetti. Ele, a contragosto foi obrigado a abandoná-la e, muito reticente, ensaiou suas primeiras digitadas em um editor de textos. - Mas Internet NÃO! Isso é boiolagem cibernética.
Pois, o assunto da antena de microondas mexeu com ele de tal maneira que até passar por essas barreiras do seu subconsciente pré-histórico foi possível e ele começou a pesquisar o assunto na "rede". Primeiro, deixou de esbravejar contra a Internet, depois passou a fazer discretos elogios, até que descobriu um mundo de informações sobre o movimento anônimo dos descontentes com a poluição invisível das ondas. Encontrou tanto material para fundamentar seus argumentos que passou a fazer rasgados elogios aos recursos que ela proporcionava.
Ele estava mudando, pouco a pouco se adaptando à modernidade que ele tanto execrava, seus colegas não perceberam isso e, talvez, nem ele próprio se deu conta da sutil metamorfose.
Um horizonte virtual agora abria-se diante dos seus olhos e Verídico mergulhou fundo nesse oceano de informações, navegou por mares deslumbrantes, surfou em praias desertas, foi arrebatado pelas vagas encapeladas da tecnologia.
Estava assim, imerso em seus devaneios quando deparou com outro assunto ainda mais inquietante: o avanço desregulamentado da biotecnologia. Ficou longo tempo aprofundando sua compreensão naquela novidade enquanto relacionava com seus modelos mentais, suas concepções mais arcaicas e sua nova versão como progressista. Queria um equilíbrio no conflito mental da sua recém-aceitação da Internet e a tecnofobia sedimentada em seu inconsciente primitivo.
Em algum "site" leu excertos do trabalho de Henrique Levcovitz que, parafraseando o grande Aldous Huxley em sua monumental obra: Admirável Mundo Novo, apontava rumos estranhos que a biologia molecular estava tomando, afinal, nos últimos 30 anos foi produzida mais informação científica do que em toda a história da humanidade. Verídico estava um tanto chocado ao lembrar que nos mesmos 30 anos ele se mantivera alienado de tantos avanços que se fazia no mundo. E na sua pesquisa, aprendeu ainda que o poder dos computadores dobra a cada 18 meses, a Internet dobra de tamanho a cada ano, o número de seqüências de DNA analisadas dobra a cada dois anos. A biologia molecular progrediu revelando os segredos do DNA, desvendando o código genético, transferindo e manipulando genes, e no momento atual, se definem três grandes temas: o átomo, o computador e o gene.
Verídico, interessado no assunto começou a conjecturar. - De veras, não podemos ficar reféns de um punhado de cientistas "filhos da P." que se acham senhores do universo e pensam que podem recriar o mundo ao seu jeito. Dizia ele, e continuou. - São prepotentes, zoilos, futuristas refratários e o cidadão comum precisa saber disso e reagir à altura.
Ele vasculhava os meandros do assunto e concluiu que o mapeamento do código genético nos colocava não mais como espectadores passivos, mas como agentes com um papel protagonizante na coreografia do mundo natural. Que o progresso das técnicas de manipulação dos genes tornou possível remover, recombinar, programar e inserir seqüências genéticas entre distintas espécies; animais ou não e, em conseqüência, a criação de novas formas de vida, pois bactérias, vegetais e animais com genes alienígenas, inseridos em seu código genético aparecem em números assustadoramente crescentes.
Os benefícios a curto e longo prazo podem parecer impressionantes mas grandes questões se apresentam em sua oposição: O que é a vida? O que significa o ser humano? A nossos cientistas pode-se permitir serem co-autores do processo evolutivo? Quem determina que vida deve ser vivida? Queremos realmente um livre mercado de genes?
A vida, antes um bem inviolável, agora se transformava em mero material para a era bioindustrial. O gene como mercadoria.
Verídico começou a imaginar o mercado de commodities oferecendo na bolsa de valores, a preços proibitivos, a combinação da seqüência genética que eliminasse o câncer; e o sistema de saúde mais uma vez, definindo quem vive e quem morre segundo suas posses. O mercado de trabalho exigindo um mapa do código genético de cada candidato a algum cargo e selecionando aquele que reúne características presumidamente melhores. Os pais selecionando seus filhos com base em suas tendências e promovendo um grande surto de abortos seletivos, na maior e mais insana ação eugênica que se pode imaginar. E, quem sabe, o Estado formando um exército de autômatos biológicos, cuja essência espiritual tenha sido removida pela ciência.
A conclusão que Verídico estava chegando é que Huxley parece ter tido uma visão profética com antecedência de um século, então ampliou seu pensamento para a coletividade e se preocupou com o destino da raça humana. Estaríamos a caminho de uma genetocracia? Ele desconectou da Internet, desligou o computador e reparou que seus pelos estavam todos arrepiados. Que futuro estava reservado para a humanidade? Será que o final apocalíptico de uma era seria desencadeado pelo governo da famigerada besta da presunção, arrogância e ganância sobre o coração do ser humano? Estamos nós, próximos de uma era que irá inaugurar milênios de paz, ausência de doenças, o paraíso instaurado na terra? Ou seremos vítimas da nossa própria inércia?
- Isso não! Gritou Verídico, agora verdadeiramente indignado. - Se precisamos de um código de ética que regulamente nossos avanços, nossas descobertas, ele será criado. Uma ética que distinga a possibilidade humana de transcender a biologia, e que não permita macular a individualidade e a singularidade, que demarque o espaço entre nossos genes e os nossos ideais.
Estava assim nesse arroubo filosófico quando concebeu a idéia de criar uma Organização Não Governamental com a missão de defender o espaço de cada um e impedir que ele seja invadido por qualquer ideologia que seja. O espaço tem que ser respeitado. E criou a ONG "QNE" - Queremos Nosso Espaço.
Hoje, passados alguns anos, a QNE já tem inclusive site na Internet http://www.QNE.org.br e está especializada em enfrentar o determinismo genético, a poluição do espaço pelas microondas, o desrespeito aos direitos humanos e qualquer iniciativa institucional ou corporativa que afronte a integralidade do indivíduo.
Verídico teve também, a alegria de conhecer uma ativista do Greenpeace que se voluntariou para secretariar a QNE e ele deixou de lado suas tendências ninfomaníacas para se apaixonar por aquela balzaquiana. Acabaram se casando na data em que, pela primeira vez, se comemorava o Dia Nacional de Combate à Poluição Eletromagnética. Em que pese não terem filhos, dada a idade algo avançada, trabalham unidos e de forma madura pelo estabelecimento de uma sociedade mais justa e a ampliação da consciência cidadã. Afinal, na busca da realização de cada um, todos nós Queremos Nosso Espaço.
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