Existem épocas que inspiram a imaginação, que trazem para a alma uma certa nostalgia inexplicável, um sentimento que parece transportar a mente, e nos remete a uma atmosfera de sonho e fantasia, mas que também pode representar um sério risco para nossa integridade mental, e até mesmo, física.
O que irei narrar poderia muito bem ser um sonho, ou a pura expressão da realidade. Uma realidade paralela, onde muitas das regras que regem nossa vida parecem não ter nenhum sentido.
Tudo começou numa tarde de inverno, um pouco fria, porém um frio relativo, já que estava num clima tropical. Olhava pela janela, observando a grossa chuva que caia incessantemente, balouçando os hibiscos do jardim, enquanto entediava-me até os ossos. Mesmo assim, gostava de observar o tom plúmbeo das nuvens que enegreciam a tarde, e que se perdiam no horizonte. O barulho dos trovões e o clarão dos relâmpagos causavam forte sensação ao meu espírito, enquanto meu olhar se prendia à linha que separava o céu cinzento, escuro, do profundo verde da mata. Para completar o quadro, deixava-me guiar pela leitura pesada de Edgar Alan Poe, enquanto ouvia a música inspirada de Johan Sebastian Bach, tocatas e fugas para órgão, que criavam um clima deveras gótico, que terminaria por me proporcionar uma experiência transcendental, extra-sensorial, seja lá o que for. Algo ao mesmo tempo romântico e aterrador.
Pareceu-me que dormira, mas logo percebi que não era tão simples uma explicação, pois ao mesmo tempo parecia ter duas personalidades, eu e o outro.
Levantei os olhos e o lugar em que me encontrava agora parecia ter saído das páginas do livro que estava lendo a pouco, e que, neste momento, transformara-se em um grosso volume com capa negra, de couro áspero, contendo muitas contas e palavras em outro idioma, o inglês.
“Nossa senhora!”, pensei em voz alta, enquanto examinava tudo à minha volta, e era tomado de tamanha perplexidade, pelo fato de tudo parecer saído de um livro de história, pois eram peças e mobília comuns ao século XIX. Eu viajara no tempo e no espaço!
Ciente deste fato, uma preocupação maior me inquietava: onde e quando eu estava agora.
Observei que trajava vestes masculinas típicas da primeira metade do século XIX, próprias para um lugar frio, pois até usava luvas de lã.
Levantei-me cuidadosamente da cadeira e olhei em volta. O cômodo era bastante escuro, os móveis feitos em madeira maciça, com puxadores e maçanetas em metal trabalhado. As paredes revestidas de madeira conferiam isolamento térmico ao aposento, mas criavam uma atmosfera pesada e sombria. Percebi que havia num canto, em oposição à pequena janela que estava fechada, e pela qual penetrava uma débil luz de entardecer, um espelho emoldurado em metal, talvez bronze. Aproximei-me curioso e ao mesmo tempo temeroso, sem ter em meu íntimo uma explicação para tudo aquilo. A imagem refletida estava turvada pela fraca luminosidade disponível. Apossei-me de uma lanterna acesa sobre uma mesinha, e rumei para frente do espelho, onde pude verificar, tomado de pavor, que o corpo que eu via refletido não era o meu. Ali na minha frente estava um homem alto, de compleição robusta e feições grosseiras, parecendo ter mais de quarenta anos. As mãos eram grandes, porém os dedos longos e finos, denotavam alguém que não estava afeito a trabalhos pesados. Um homem de letras e números.
Eu habitava este corpo, comandava-o, para qualquer um que viesse ter comigo, eu era este corpo. Mas uma questão crucial tomou-me de assalto, angustiando-me. Eu sabia quem eu era, mas nada divisava sobre este corpo. Que personalidade fora ele até aquele momento? Seu nome, seu passado, seus crimes. De repente, a idéia de conhecer o mundo em que agora estava vivendo pareceu-me perigosa, pois poderia estar habitando o corpo de um paria, de um assassino ou malfeitor, procurado pela justiça ou por indivíduos sedentos de vingança e ansiando matar-me, digo mata-lo.
Procurei acalmar-me. Estava fantasiando além da conta. Agora que eu estava, possivelmente, nos aposentos deste homem, deveria procurar informações sobre quem era esta pessoa, e o que fazia. Comecei a vasculhar todas as gavetas, revirando cada papel, livro, o que fosse. Estava tão cego, que não dei por mim, que, todos aqueles documentos, os quais eu lia e entendia perfeitamente, estavam escritos em inglês. Pensei então em proferir uma palavra em voz alta, pensei-a em português, mas, ao proferi-la, eis que no outro idioma era falada. Mas eu ouvi e entendi perfeitamente. Era fantástico tudo aquilo que estava acontecendo. O medo inicial estava sendo substituído por uma sensação de euforia, pois eu agora poderia vivenciar uma experiência única, com uma outra personalidade, em um outro tempo.
Encontrei alguns documentos que citavam repetidamente um nome: Joshua Smith.
Possivelmente este era o nome do meu hospedeiro. Encontrei dinheiro numa caixa de madeira, eram dólares americanos, cuja data de impressão era 1833, cento e cinqüenta anos no passado, o país: os Estados Unidos da América.
Já anoitecera, ao abrir a janela do pequeno quarto, notei os lampiões a gás acesos, e também um movimento de entra e sai no pavimento térreo do prédio em que estava.
Aquilo me pareceu uma velha hospedaria, pelo que pude ler na tabuleta pendurada acima da entrada, que era agitada violentamente pelo forte vento que soprava. Tomei uma grande chave que estava sobre um móvel e abri a porta. Mesmo receoso, avancei pelo corredor e desci um lance de escada. Avistei um salão envolto em penumbra, e com um murmúrio crescente, quase um alarido. Desci o resto da escada calma e decididamente, querendo passar despercebido, mas notei que minha figura não permitia tal proeza, pois todos olharam para mim, com um ar nada amistoso. Balbuciei uma “Boa noite” e sai rapidamente.
A rua estava fria, e envolta numa escuridão que, mesmo a trêmula luz dos lampiões não conseguiam romper. Poucas pessoas cruzavam meu caminho. A cidade não era um grande centro, mas parecia ser importante, talvez a capital de uma província do nordeste americano. Instintivamente pensei na Philadelphia, mas também poderia ser Boston.
Avistei um coche vazio, fiz-lhe sinal para que parasse, e, tendo o cocheiro atendido ao meu pedido, perguntei-lhe o nome da cidade, era mesmo a Philadelphia. Pedi que me levasse para Jersey.
Estranhando meu pedido, disse-me que circulava somente nos arredores, mas se eu quisesse viajar até Jersey, me levaria até uma estrebaria, que me alugariam um cavalo selado e outros apetrechos necessários.
Agradeci e dispensei-o, pois já tinha o que queria: saber onde eu estava.
Continuei perambulando pelas ruas escuras, um passeio estonteante, afinal, nem a mais extravagante obra cinematográfica ou algum mirabolante parque temático poderia me proporcionar tal experiência.
De repente fui abordado por uma mulher, à porta de uma taberna. Deveria ser uma prostituta, mas ela parecia me conhecer, pois me chamou pelo nome Joshua.
- Desculpe-me, mas não consigo recordar o seu nome.
- Quanta polidez! Não estranho quando não lembram meu nome, afinal me chamam de tantos outros que às vezes até esqueço como fui batizada. Sou a Sarah, mas o que é estranho mesmo é o modo como você está falando. Normalmente você é um tanto indelicado.
- Sei que estou um pouco diferente esta noite, parece mesmo que sou outra pessoa. Acho que perdi a memória, pois não me recordo de nada sobre minha vida. Nós nos conhecemos há muito tempo? Procurei fazer com que ela acreditasse numa perda de memória, pois assim poderia checar mais informações sobre este tal Joshua, sem levantar muitas suspeitas.
- O que aconteceu? Bateu com a cabeça?
- Quando acordei já estava assim.
- Sim Joshua, isto é um problema. Tem dinheiro? Pague-me um trago.
Aquela mulher parecia saber muita coisa, e eu precisaria usar de muita astúcia para descobrir o que pudesse, sem levantar suspeita.
Nos dirigimos ao bar onde tomamos uma bebida, foi quando reparei na beleza daquela moça, o que me tocou muito. Conversamos mais sobre ela do que sobre mim, digo Joshua, e então fiquei sabendo de sua tragédia pessoal, da pobreza de sua família, da qual procurou fugir, encontrando somente aberta a porta da prostituição. Quanto mais conversávamos, mais eu sentia uma profunda ternura por ela, o que me fez desejar de fato deitar com ela.
- Você realmente perdeu a memória, Josh, pois nunca pensei que poderia contar-lhe tanto quanto o faço agora. Você sempre foi tão fechado e frio, mesmo quando na cama.
- E por falar em cama, quando iremos para uma?
Ela sorriu e me tomando pelo braço, levou-me ao andar superior, onde havia um quarto que usava para atender sua clientela. Lá dentro, senti um certo receio, pois estaria amando aquela mulher com o corpo de outro homem, o que me deixou um tanto perturbado, mas a magia que brotava daquele momento, e a ternura que percebi no olhar de Sarah, fizeram com que esquecesse de tudo e a possuísse de forma completa, aproveitando cada instante em que nos entregávamos aos nossos desejos, ela profissionalmente e eu, experimentalmente.
Entregamo-nos à luxuria sem meios termos, sem preconceitos ou pudores, o que nos levou a uma explosão de prazer e êxtase que por fim nos deixou exaustos.
Dormi ao seu lado, e, quando acordei, percebi que ela me fitava com uma expressão carinhosa.
- O que tens?
- Realmente há algo de estranho com você, pois sempre fora tão rápido no serviço, nunca dormiu aqui. Agora eu vejo que você mudou, seu rosto é o mesmo, mas seu semblante é mais tranqüilo, nem parece que cometeu um crime...
- Como disse? Eu cometi um crime? Porque não me falou nada?
- Você nunca gostou que tocasse neste assunto, e, desde que veio de Boston, tem se mantido em segredo, fugindo dos irmãos Taylor. Não consigo entender, você não se recorda de nada mesmo?
- Conte-me sobre o crime, o que sabe?
- Bem, na verdade eu só sei o que você me contou, se escondeu alguma coisa, não posso te esclarecer. Em Boston você era contador de uma propriedade pertencente aos Taylor, vindo a se envolver com a irmã mais velha dos irmãos John, Edgard e Peter, uma solteirona chamada Catherine, que viu em você uma chance de deixar de lado a vida solitária que levava. Mas os irmãos não concordaram com uma possível união entre vocês, o que levou a um clima tenso, que culminou num duelo, do qual você não sairia vivo, de uma forma ou de outra. Porém a senhorita Catherine descobriu o plano e, ao tentar impedir que seu irmão Peter, que estava escondido, o matasse, depois que você matou John, se interpôs entre vocês, sendo mortalmente ferida. Os dois irmãos que restaram, Peter e Edgard, juraram vingança, e, desde então, nestes últimos oito meses, você vem se escondendo, e planejava fugir para o sul, para Savannah.
Aquela narrativa me preocupou, pois o meu maior temor, desde que me dei conta que passara a habitar o corpo de outra pessoa, em outro tempo, era justamente a possibilidade de estar envolvido em algum crime, e perseguido por alguém, num lugar totalmente estranho para mim.
- Preciso ir embora imediatamente. Levantei-me depressa, vesti-me e fui embora, deixando algum dinheiro para o pagamento pelo serviço de Sarah.
- Tudo isto? Verei você novamente?
- Acho pouco provável. Adeus Sarah, obrigado por tudo.
Sai para a rua bastante perturbado. Não tinha idéia do que fazer. Parecia que teria que me adaptar a esta nova vida, se quisesse sobreviver, e teria que lutar até a morte por esta chance.
Cheguei à estalagem e subi rapidamente para meu quarto, o dia já estava claro. Vasculhei tudo, separando o que pudesse ser necessário numa viagem sem retorno para qualquer lugar. Mas o que eu realmente procurava, finalmente encontrei: uma arma. E munição, bastante munição. Pareceu-me que as idéias que me acorriam eram as mesmas que Joshua tivera. Isso me deixou preocupado, pois até então não me ocorrera o que teria acontecido com a alma de Joshua Smith. Estava muito preocupado em livrar minha pele, digo, a dele, para me entreter com estes aspectos filosóficos da minha atual condição existencial. Precisava escapar a qualquer custo.
Nisso alguém bate à porta, chamando-me.
- Senhor Joshua. Já alimentei seu cavalo, vai sair com ele hoje, pois terei que colocar o arreio.
- Eu tenho um cavalo? Fiquei surpreso e feliz, pois isso resolvia metade de minhas preocupações do momento. – Claro que sim. Disse ao homem, para tranqüiliza-lo, pois minha surpresa o deixou desconfiado.
- Dois homens estiveram aqui ontem à noite e fizeram perguntas.
- Que tipo de perguntas?
- Procuravam pelo senhor, e não pareciam nada amistosos.
- O que você disse para eles?
- Não disse nada?
- Muito bem. Vou deixar a estalagem hoje. Veja quanto eu devo.
- Sim senhor.
Deixei a Philadelphia antes do meio dia, e, guiado por um velho mapa que encontrei nas coisas de Joshua, rumei para o sul, para Savannah. Dentre os objetos que carregava comigo, havia uma caixa preta, de madeira forrada com couro, trancada com um grande cadeado. Acreditava que ali houvesse dinheiro, mesmo tendo comigo um soma considerável, encontrada numa sacola de lã.
Acho que o estalajadeiro estava desconfiado, pois quando paguei a conta, ele me questionou para onde eu iria. Disse-lhe que seguiria para o norte, mas percebi que um rapazote me seguia pelas ruas da cidade, como a querer certificar-se qual a minha direção. Fiz o possível para despista-lo, mas hoje sei que meus esforços foram infrutíferos.
Galopara mais rapidamente para chegar logo à floresta que se estendia ao sul da cidade. Podia agora ir mais lentamente, enquanto colocava as idéias em ordem, e tentava entender porque tudo aquilo estava acontecendo.
Mas, por mais que desse trato à bola, nada parecia lógico o suficiente para explicar-me este fenômeno.
Naquele momento, um zunido se fez perceber no meu lado esquerdo, era uma bala. Meus perseguidores haviam encontrado meu rastro e estavam perigosamente perto. Eu que nunca fora um grande cavaleiro, parti em disparada, tentando despistar os irmãos Taylor.
À minha frente deparei-me com uma estreita ravina, onde acreditei poder encontrar um esconderijo ou um abrigo onde pudesse me defender.
Desci do cavalo e o prendi a um galho baixo, logo atrás de uma rocha. Desembrulhei as coisas que recolhera na estalagem e empunhei a pistola carregada, ficando em posição de vigília atrás da rocha, aguardando meus perseguidores.
Logo ouvi os cavalos se aproximando, e, quando me preparava para atirar, uma bala atingiu a rocha, jogando estilhaços no meu rosto. Atirei de pronto contra eles, sem mirar muito bem, mas acertei um deles fatalmente. Era Peter. Edgard descera rapidamente de sua montaria para ajudar seu irmão, mas era inútil. Passo a atirar contra mim com as duas armas empunhadas, enquanto procurava abrigo. Eu carregava novamente minha arma, para em seguida esperar por um movimento dele, o que não demorou muito, ficando alguns instantes desprotegido, se tornou alvo fácil da minha mira, pois o atingi na perna esquerda, fazendo-o tombar.
Aguardei que parasse de atirar, e quando ele tentava se arrastar para um local seguro, corri em sua direção e o rendi, jogando suas armas para longe.
- Porque não me mata logo? Mate-me logo desgraçado.
- Não pretendia fazer nada disso, apenas me defendi.
- Você matou meus irmãos e minha irmã. Iria até o inferno para me vingar de você.
- Eu não matei John. Num duelo, o vencedor não pode ser considerado assassino.
- Duelo? Você está louco? O que você fez foi pura maldade. Você arrancou o coração da Catherine e degolou John, quando tentou impedi-lo.
- O que disse?
Naquele instante, fique perplexo com a assustadora revelação que Edgard acabara de fazer. Indaguei-o a respeito, alegando que não tinha lembrança de nada, porém seu imenso ódio o impedia de falar mais que impropérios e maldições contra mim.
Amarrei-o a um tronco, atando seu ferimento com um pedaço tecido. Disse-lhe que somente o libertaria depois que contasse tudo o que acontecera.
Deixei que ficasse só, enquanto recolhia gravetos para uma fogueira, pois logo anoiteceria. Amarrei os cavalos e cobri o corpo de Peter com uma manta. Pensei em sepulta-lo ali mesmo, porém pretendia libertar Edgard, e ele certamente gostaria de enterrar seu irmão em solo consagrado.
Acendi a fogueira e me sentei em frente ao meu prisioneiro.
- Pode me falar agora? Somente o libertarei quando me contar tudo o que houve.
- Você não se recorda?
- Não me lembro de nada. Tudo que sei me foi relatado por uma prostituta que era amiga de Joshua.
- Sua amiga! Porque fala como se fosse outra pessoa?
- Porque sou. Meu nome é Marco, sou de outro país e de outro tempo, no futuro. Sem qualquer explicação, me encontrei animando este corpo, que não me pertence, e agora sou perseguido por um crime que não cometi, mas que foi perpetrado por este corpo, quando era comandado por Joshua Smith.
- Isto é loucura, ou então bruxaria, satanismo. Acha mesmo que vou acreditar nesta asneira?
- Tudo bem se não acreditar, mas eu preciso saber de você o que eu fiz.
- Você apareceu em nossa propriedade a pouco mais de um ano, oferecendo-se para trabalhar na contabilidade, em troca de casa e comida, e como não éramos afeitos a estes controles, concordamos em emprega-lo, e logo vimos que poderia ser muito útil nos negócios. Notamos também que nossa irmã Catherine simpatizou com você, pois era um homem de livros, e ela, quase uma solteirona, acreditou que poderia fazer um bom casamento. Não concordamos com aquilo, mas preferimos aguardar os acontecimentos. O John era nosso irmão caçula, e como tinha mais aproximação com a Kate, pois quando nossos pais morreram, ela cuidou dele, que ainda era uma criança, Via com simpatia a idéia de casamento, mas nós concordamos em não nos metermos no assunto até que fosse necessário. O tempo passou, e a Kate parecia mais apaixonada por você, porém eu estava desconfiado que algo não ia bem, pois você se mostrava muito misterioso. Uma noite, vi a Kate se dirigir para o celeiro, com uma lanterna, e a segui. Lá pude ver que se amavam, em meio a um circulo de velas negras. Isto me apavorou, e, naquele momento decidi que era hora de você partir. Comuniquei o fato aos rapazes, que ficaram muito contrariados, mas concordaram. No dia seguinte, nós o despedimos, mas você não deu uma palavra. Pegou seus pertences e foi embora. Nossa irmã ficou revoltada, dizendo que fugiria da fazenda para casar-se contigo, a qualquer custo. Um pressentimento ruim tomara de assalto meu coração. Naquela mesma noite, fui acordado por gritos horríveis que vinham do celeiro. Rapidamente corri para lá, e o que encontrei me encheu de ódio e terror. Meu irmão John estava morto, decapitado, Kate, minha pobre irmã, também morta, trazia no peito uma enorme fenda de onde fora arrancado seu coração, enquanto você sorvia o sangue que dele escorria, ainda quente. Ao perceber minha presença, correu para fora, levando o coração num saco, fugindo rapidamente em seu cavalo, sem que uma bala sequer o atingisse. Jurei mata-lo por isto, e irei faze-lo, com a ajuda de Deus ou do diabo.
Ao findar sua terrível narrativa, os olhos de Edgard faiscavam de ódio, ao relembrar aqueles momentos de dor e revolta. Os meus olhos lacrimejavam, e minha mente parecia querer escapar daquele corpo assassino. Naquela noite pensei em libertar aquele homem amargo e permitir que me matasse. Porém não o fiz, e logo saberia de fatos mais horrendos que aquela história de assassínio.
A manhã se aproximava e eu não dormira quase nada. Decidi que deixaria Edgard amarrado e partiria para o sul, levando os cavalos, que poderiam me render algum dinheiro. Também havia a caixa preta, que estava trancada com cadeado, e que deveria conter algo de valor. Tomei a arma e disparei contra o cadeado, abrindo-o. Havia um saco preto e alguns rolos de pergaminho. Os pergaminhos eram muito velhos, e estavam escritos em latim, que eu não pude entender. O saco era pesado, mas quando meti a mão no seu interior, senti o terror tomar conta de minha alma, pois dentro dele estava o coração putrefato de Catherine. Tudo o que Edgard me contara era a verdade, e eu entendia agora que se tratava de algum ritual macabro, a forma como Joshua matou aquela moça. Talvez até mesmo o fato de eu estar na situação atual, tivesse ligação com os fatos pregressos e os tais pergaminhos. Precisava de alguém que me ajudasse com aquilo. Poderia encontrar um padre que me ajudasse a decifrar os pergaminhos, e até desfazer aquele feitiço, se fosse o caso.
Deixei Edgard amarrado e parti imediatamente. Uma idéia fixa tomara conta de mim: tinha que acabar com meu cativeiro no corpo de Joshua. Pouco tempo depois chegava a uma pequena cidade, que logo descobri tratar-se de Baltimore. Perguntando a alguns transeuntes, cheguei a uma igreja católica. Entrei carregando comigo meu fardo macabro, e procurei o padre.
- Que desejas meu filho? Parece angustiado.
- De fato estou padre. Por favor, ouça minha confissão.
Assim foi feito. Contei-lhe tudo que me acontecera, por mais espantoso que pudesse parecer. Ele me ouvia atento, parecia esconder um sentimento de horror. Temi que me entregasse às autoridades locais para ser enforcado.
- Quero que me ajude a decifrar os pergaminhos que trago comigo, pois sei que aí está a chave que me libertará desta maldição.
- O que me pede é muito perigoso. O demônio usa de muitos meios para enganar e vencer os servos de Deus.
- Só posso contar com o senhor, padre. Não sou assassino.
Padre Phillip consentiu em me ajudar. Levou-me a um aposento reservado, onde às vezes realizava cerimônias de exorcismo.
- O demônio tem se mostrado mais audacioso nesta região nos últimos tempos.
A sala de exorcismo tinha um aspecto lúgubre. Uma luz muito débil era filtrada por uma pequena clarabóia no teto. No centro havia uma grande mesa retangular, de madeira escura, com algumas pesadas cadeiras altas ao redor. Um candelabro com velas grossas e usadas e uma arca aparentando ser muito antiga completavam o mobiliário da sala, que ainda dispunha de um crucifixo preso à parede, na direção da cabeceira da mesa.
Padre Phillip acendeu algumas velas e sentou-se à cabeceira. Sentei ao seu lado e dei-lhe os pergaminhos. Ele lia atentamente, e parecia assustado com o que estava à sua frente. Então, segurando minha mão direita, disse-me:
- Meu filho, tu terás que demonstrar muita coragem e muita fé em Deus, pois de outro modo não poderei ajuda-lo.
- O que terei que fazer para livrar-me deste fardo?
- Os pergaminhos foram copiados a muito tempo de um terrível livro de invocações demoníacas que a Igreja julgava devidamente destruído. Um único exemplar é guardado em algum lugar do Vaticano, e somente será usado quando o dia do juízo estiver próximo, para a luta que será travada entre Deus e o diabo. No entanto, os servos do mal são muito ardilosos, e devem ter conseguido cópias diretamente da própria Igreja Romana.
- Fala-me logo padre Phillip. Impacientava-me ante ao semblante preocupado daquele homem velho, grisalho e encurvado, que parecia muito experiente nos assuntos para-normais.
- Terás que demonstrar sua fé, pois o que foi feito por meio destes sortilégios o trouxe do seu tempo para este corpo, corpo de um assassino, e deixou o seu próprio corpo à mercê do espírito maligno deste tal Joshua, que ao associar-se ao demônio, condenou-se a si mesmo à danação eterna.
- Porque faria tal coisa este infeliz?
- Este feitiço confere ao homem a vida eterna, porém, como obra do todo-enganador, a vida eterna conseguida é na verdade a vida de outros homens, assim, ele terá que fazer o mesmo que fez aqui, agora usando seu corpo, para que possa continuar vivendo eternamente, e assim, passará do seu corpo para outro, e outro, até que seja detido.
- E como poderemos detê-lo?
- Para que ele seja impedido de continuar a espalhar sua maldição, deverá perder seu corpo original. Ele deverá ser sacrificado.
- Quer dizer que terá que matar este corpo?
- Ou este, ou outro que seja anterior a ele. Não temos como saber se este corpo é o original do tal espírito. Isto pode estar ocorrendo a um bom tempo.
- Então, se matar este corpo não terá certeza que impedira o Joshua de continuar?
- Não. É por isto que falei na fé. Se tiveres fé, poderás ser contemplado com a libertação. Teremos que arriscar.
- E como deve ser esta morte?
- Cravarei uma estaca em seu coração. Assim terminará.
- Meu Deus!
- Absorverei você de seus pecados, o abençoarei e rezarei para que sua alma seja com o nosso Senhor Jesus Cristo.
- Isto é muito reconfortante.
- A escolha é sua. Se continuares, não poderás retornar ao seu tempo, ao seu corpo. Aqui é acusado de assassinato, e certamente será preso e enforcado.
Apavorei-me de fato e saí daquela sala quase correndo. Na rua, pude ver aterrado que tudo que o padre dissera era verdade. Agora eu não era nada, senão um paria assassino.
Andei pelas ruas de Baltimore, procurando não ser encarado pelas pessoas. Um sentimento paranóico crescia dentro de mim. A noite chegava trazendo mais fantasmas à minha estranha vida. Foi quando vi um homem a cavalo, acompanhado de outros três. Pude reconhecer Edgard, agora livre, estava outra vez no meu encalço. Sem muitas opções, voltei à igreja, a tempo de encontrar padre Phillip em suas orações particulares.
- Sabia que voltaria. Rezei por sua alma.
- Vou arriscar padre. De qualquer forma eu morrerei. Melhor morrer tentando me libertar do que continuar acorrentado ao demônio.
- Sábias palavras.
Voltamos à sala do exorcismo. O padre benzeu-me e espargiu água benta sobre minha cabeça, enquanto proferia algo como uma prece, em latim. Depois pediu que tirasse a camisa e deitasse sobre a mesa, enquanto ele abria a velha arca e retirava de dentro uma grande estaca de madeira negra e um martelo, também de madeira. Lembrei-me dos velhos filmes de vampiro que acostumara assistir na tv, e me senti o próprio Christopher Lee. Um grande pavor apoderou-se do meu espírito, pois eu havia concordado em sacrificar o corpo que agora habitava, e não poderia sequer imaginar o que aconteceria após minha morte.
Procurei não pensar mais nisso, e voltei minha mente para uma oração. Pedia ao pai celestial que amparasse meu espírito naquela hora extrema. Com os olhos cerrados, podia ouvir os movimentos de padre Phillip na sala, enquanto murmurava palavras ininteligíveis.
Um misto de ansiedade e terror me dominava. Tive vontade de fugir dali, mas me sentia paralisado. Então, num golpe rápido, que não me permitiu qualquer reação, o velho padre cravou com toda força a estaca no meu peito, causando-me imensa dor. Abri os olhos no derradeiro instante, e lembro ter balbuciado algo como “meu Deus”.
Uma grande confusão se apossou de mim. Não sei onde estava, ou o que acontecia. Um grande turbilhão me envolvia alucinantemente. Então abri os olhos e me vi sentado numa cela de presídio nos dias atuais. Estava de volta ao meu tempo, ao meu corpo, muito embora agora fosse já um homem velho. Não havia ninguém mais na cela. Estava completamente só.
Um carcereiro passou por ali algum tempo depois e parou para falar comigo:
- Então, como vai esta manhã?
- Como vim parar aqui?
- A velhice já está chegando enfim. Logo a morte o libertará.
- Como cheguei até aqui? Gritei.
- Porque matou aquela moça, de forma tão cruel? Retirou-lhe o coração. Não se lembra mais? Maldito assassino.
Então me dei conta de que ele fez aqui, com meu corpo, o mesmo que fizera no passado. Sou um criminoso que não cometeu nenhum delito, e, por duas vezes fui condenado.
O padre Phillip estava certo enfim. Voltei para o meu tempo, porém o estrago já havia sido feito, e agora só me resta esperar o pouco tempo de vida que ainda devo ter. Estou muito velho, e é bem provável que não seja libertado senão pelo fim desta existência. Perdi quarenta anos de minha vida, enquanto vivi no passado apenas por três dias.
Agora olho pela grade da cela, e vejo o céu negro. Uma tempestade está se formando no horizonte. Relâmpagos e trovões enchem a atmosfera com seu espetáculo pavoroso, relembrando-me o dia em que fui arrastado à maldição de um homem, tornando-me prisioneiro do tempo.