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Contos-->ESTUPRO -- 11/07/2003 - 10:14 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
_Como foi?
_Ele me surpreendeu em plena madrugada, me acordando com o toque da arma em minha cabeça. Entrara pela janela sem fazer barulho. Disse-me para não gritar, ameaçando e ao mesmo tempo tranqüilizando-me pois não me machucaria.
_E daí?
_Mandou que eu me despisse, a arma firme em sua mão e sempre na minha direção. Não aparentava nervosismo. Obedeci, morta de medo. Aguardou um pouco e então se aproximou, já com a mão no “zip” e ordenou que eu iniciasse com o sexo oral. Relutei e ele, então, bateu com o cano do revolver mais uma vez em minha cabeça, deixando-me sem opção.
Silêncio. A moça, dividindo bem o notável constrangimento com a boa vontade na prestação das informações, cooperava, graças ao seu bom nível escolar e, vez em quando, fazia uma pausa entrecortada com um suspiro. Mais um minuto e o médico:
_Pode continuar?
_Claro. A seguir, mandou que eu me virasse, ficando deitada de bruços. E então fez um comentário acerca de minha pilosidade excessiva. Foi ao banheiro, trouxe uma gilete, sabão e água e me raspou nas nádegas e coxas, demoradamente, suavemente, emitindo suspiros e falando coisas com um vocabulário chulo. E depois... . Bem, doutor. Ele praticou sexo oral, anal e vaginal.
_Está bem. Acalme-se. É o bastante para o relatório.

Depois do exame de corpo delito e dos procedimentos burocráticos de praxe e de um silêncio encabulado em que ambos se entreolhavam com discrição, reiniciou-se um diálogo menos formal, amparado na relação de cordialidade que se estabelecera e no bom padrão intelectual da vítima. Comentários entrecortados e descomprometidos sobre a violência dos dias atuais, a impunidade, etc. foram aos poucos enveredando para uma conversa mais firme, mais racional em que a jovem barbarizada, lágrimas retornando à face, exprimia toda a horrível sensação naqueles momentos de pânico. Mais à vontade, foi acrescentando:
_É um monte de sensações ruins, peculiares, quase concomitantes. Primeiro o susto, a surpresa fazendo com que o coração ameace sair pela boca e um medo enorme que nos torna impassíveis, incapazes de qualquer reação. E uma desesperada vontade de que tudo aquilo acabe logo para se ver fora de perigo novamente. Logo a seguir o asco, a vergonha e uma sensação indescritível que não cede lugar a qualquer revolta ou ímpeto de reação. Ao contrário, nos esforçamos para ser dóceis e colaborativas com o único fim de auto- preservação. Cada minuto parece horas e tudo o que desejamos é ver aquela pessoa a léguas de distância. Depois que, enfim, tudo terminou, fiquei à janela até me sentir segura de que ele não voltaria. Corri então para o banheiro e me lavei repetidas vezes, esfregando a pele com força, quase a arrancando, como se com ela fossem também as lembranças recentes daqueles momentos repugnantes. Junto, um enorme sentimento de perda. Só depois é que vem a raiva, além de uma culpa indecifrável e por último o racional e a iniciativa de chamar por alguém. Mas o pior de tudo é a sensação de presa. Presa dominada pelas garras de um monstro. É ser posse e ele senhor. Senhor absoluto da minha vida, da minha dor, das minhas vontades. Eu ali, passiva, obediente, sem iniciativas. Os seus gemidos de prazer doentio contra a minha dor física e interior. Eu inerte como lebre nas presas da fera. Eu ninguém. Todo o meu eu, todo o meu orgulho, toda a minha história, todos os meus méritos, todas as minhas afeições, todo o meu futuro e os meus planos, tudo aquilo projetado no corpo que servia então de mero objeto de prazer para um canalha. Sinto como se tivesse me resumido a uma sombra ou a uma carcaça vazia, desejando acabar.

Mais lágrimas. E o médico habituado a diálogos mais objetivos olhava-a penalizado e preocupado, assimilando bem toda a tragédia, compreendendo com extrema sensibilidade os seus bem relatados detalhes.
_ A palavra estupro deveria ser mais abrangente. Há coisas muito parecidas e que se repetem a cada segundo na vida de seres humanos. Quantos relacionamentos consentidos não geram sentimentos semelhantes? Não exclusivos da esfera sexual, mas integrantes de todos os níveis das relações humanas. O patrão e o empregado explorado. Tutores prepotentes. O governo ditatorial ou pseudodemocrático. Mafiosos. Militares dominadores. Gangues violentas. Invasores. Autoridades que abusam do poder. Chefes que assediam. Há sempre uma situação de exploração do homem pelo homem. Há sempre uma desigualdade de interesses e uma relação em que se confrontam dor e prazer. É a relação de vencido e vencedor que, na melhor das hipóteses, suaviza-se quando há, pelo menos, uma tentativa de reação por parte do primeiro, mas que parece ser inerente à têmpora da espécie e que, desafortunadamente haverá de perpetuar-se nas nossas vidas por muitos e muitos anos.

Abril de 2001
Daniel Carrano Albuquerque
Email: notdam@bol.com.br
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