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Contos-->FÊMEAS -- 07/07/2003 - 20:40 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
I - A doméstica atravessava o portão e fechava-o cuidadosamente antes de subir a ladeira em direção à feira que acontecia semanalmente no bairro de Santa Teresa.. Magra e alta, a indumentária típica dos primeiros anos da década de 60, vestido comprido, meias curtas e tênis. A sacola de compras pendurada na mão direita, a esquerda comprimindo a carteira junto ao tórax. Os cabelos castanhos e compridos detidos na fronte pelo prendedor barato. Não era uma moça bonita, pois tinha um nariz muito comprido, sob o qual exibia-se um cruel bigodinho, mas caminhava com uma postura ereta, muito séria, vagarosamente, como quem sabe perfeitamente administrar o seu tempo. Talvez por ser esguia e deixar que se notasse uma certa adiposidade ao nível das nádegas e coxas, sempre atraia a atenção dos homens com quem cruzava no caminho ou que paravam nas portas e janelas das casas. Os feirantes a tratavam com simpatia e lhe faziam galanteios, ao que ela respondia com grata cordialidade e um sorriso meigo. Na verdade, seus modos aristocráticos eram uma imitação de sua patroa, a viuva do desembargador. Dona Sofia mantinha as vestes escuras apropriadas para o luto, embora o passamento de seu marido já tivesse ocorrido há quase 10 anos. Seus modos eram impecáveis com fins de não macular a sua condição de esposa de figurão, mas também devidos à herança da educação refinada que havia recebido no seio de família de classe média alta do Rio de Janeiro. O luto não lhe impedia que se vestisse bem. Era também magra e alta, cinqüenta e poucos anos, discreta canície nos lados do penteado alto e bem cuidado e não dispensava jóias como braceletes, cordões e brincos longos. Pintava-se com moderação, os sapatos sempre altos, os passos largos porém calmos. Havia uma certa combinação entre compenetração e tristeza no olhar.

Ao contrário da criada, sua passagem, que também despertava atenção, era observada com respeito. Nunca sorria, mas não se eximia de dirigir um cumprimento a qualquer pessoa com quem dividia o espaço da calçada. Eu a vi muitas vezes parada à espera do bonde, com sua elegância que nunca a deixava despercebida. Adolescente, numa idade em que as manifestações da esfera sexual preponderam, eu não podia deixar de reparar nas suas curvas e na pele branca de suas coxas que transpareciam no momento em que as fletia para subir no estribo do veículo. As duas moravam sozinhas na casa, uma construção da década de 20, de frente larga, pintada em amarelo, as janelas ornamentadas com cortinas brancas, a porta principal dupla, de madeira trabalhada exibia-se imponente sobre uma escada de quatro degraus em semicírculo e que terminava a uns dez metros do portão de ferro, o qual compunha com as grades de pontas de lança. Essa frente era enfeitada por um jardim que recebia muito zelo. Os corredores laterais eram o caminho para o quintal onde havia um pequeno pomar e um canil no qual se mantinha cativo por todo o turno do dia, um doberman feroz. O cão parecia ressentido pela falta de liberdade, da qual, ao contrário, gozava a cadelinha Lory, uma “poodle” branca que adentrava à casa sempre que queria e também saía à rua a todo momento que lhe interessasse, pois magrinha, conseguia atravessar uma parte da grade que havia sido danificada. Esse animalzinho é o terceiro personagem de ponta da história.

II- Dona Sofia tinha um casal de filhos que a visitavam pouco. O rapaz, casado, lhe trazia sempre o neto, um menino irrequieto e inebriado pelo espaço da mansão. A moça, médica, residia nos Estados Unidos onde fazia um curso de aperfeiçoamento. No resto, recebia como visitas, uma irmã e uma prima solteiras, com quem compartilhavam idas às lojas para compras e eventuais passeios turísticos, bem como a freqüência a teatros e a apresentações de música erudita. Visitantes mais assíduos eram o Juiz Sandoval, colega de seu falecido esposo, que comparecia ora acompanhado de sua esposa, ora não, o Dr. Leônidas, médico sessentão que sempre trazia a mulher e jovens servidores do Forum que vinham a convite para almoços e jantares que ela oferecia com certa periodicidade, o que conferia uma certa alegria àquela casa. De resto, a vida daquela senhora, que não trabalhava pois vivia confortavelmente com a pensão que lhe deixara o jurista, era preenchida por saídas diárias ao centro da cidade, onde fazia compras, visitava museus e biblioteca, lanchava, administrava aplicações em instituições bancárias e visitava amigos. Muito poucas vezes, fazia-se acompanhar da Dirce, a doméstica. Somente quando tinha compras especiais no próprio bairro, aquela vindo com as bolsas penduradas. Das compras rotineiras, Dirce se encarregava com perfeição. Era uma boa empregada, oriunda de Campos e já estava ali há dez anos, desde os dezoito.

Dirce tinha um namorado. Aquiles era um homem de 40 anos, meio caipira, baixo e barrigudinho que trabalhava com faxina nos escritórios do centro. Recebia proventos federais pela sua atuação na Segunda Guerra, coisa, aliás de que se orgulhava muito. Morava num cortiço onde também residiam outros homens solteiros, viúvos e estudantes, na mesma rua onde ficava a casa da Dirce. Adorava os papos com os estudantes, para quem fazia relatos do “front”. Aqueles fingiam demonstrar entusiasmo e depois ironizavam. Aquiles gostava de falar sobre a coragem dos brasileiros que encaravam o inimigo frente a frente e da covardia dos americanos que, ao contrário, destruíam toda uma vila com bombardeios antes de entrar para capturar alemães. Na maioria das vezes atoa, interceptava a namorada em frente ao cortiço quando ela passava, mas Dirce protestava alegando que os encontros tinham que se limitar aos fins de semana. À noite, cansada, se deitava cedo, porque também se levantava ainda de madrugada para cumprir com a lida da casa. Nos fins de semana, um cinema acontecia vez em quando. Na maior parte, os encontros se faziam nas ruas escuras do bairro, defronte a muros altos. Ali, só Deus sabe o que acontecia. Aquiles, respeitoso, não revelava para os rapazes que insistiam, entretanto, com zombaria e malícia, em saber da condição de virgindade da moça. Ele não respondia. Por outro lado, não tocava no assunto casamento. Esperava-se que, pela sua idade, ele deveria ter pressa, mas se calava e dava para imaginar que havia no íntimo, algo que o distanciava daquela pretensão. Não sei como reagia a namorada diante daquele silêncio, mas o certo é que ela já começava a demonstrar uma certa insatisfação, evitando encontros e se tornando mais fria com o romance. Isso começou a transparecer no momento em que passou a adiá-los. Inventava desculpas e quando eles ocorriam, encurtava-os pedindo para ir mais cedo para casa.

Essa foi a chance para que entrasse em cena um dos seus outros admiradores, um guarda da Polícia Ferroviária que morava pelas redondezas. Um pouco mais novo que o Aquiles, era porém menos atlético, gordo, branquelo e calvo. Há muito vinha dando em cima dela com pilhérias e propostas quando caminhava ao seu lado ladeira acima ou abaixo. Pois Dirce aceitou encontrar-se com ele. Entretanto o novo pretendente não se dispôs a cuidar da discrição. Não tinha tempo nem paciência para ir com ela para longe dos olhos do Aquiles. Agarrava-a ali mesmo na calçada, em plena luz do dia, sem se preocupar com os passantes e para desespero da namorada. Ela, com as sacolas nas mãos, tentava evitá-lo mas não tinha sucesso devido à impulsividade do homem e talvez ao desejo que lhe despertava aquele garanhão furioso. Nós, os garotos da rua, divertíamo-nos muito com o modo desajeitado de ambos e não conseguíamos esconder as gargalhadas toda vez em que o “quepe” despencava da cabeça do soldado. Como não poderia deixar de acontecer, Aquiles logo tomou conhecimento. Ficou triste e, envergonhado, não comentava com a gente sobre o assunto.

Aconteceu, após, um episódio que seria cômico se não nos condoêssemos da humilhante dor por que o novo namorado passara. Numa das noites em que Dona Sofia estava ausente, o guarda manifestou sua vontade de entrar na casa. Dirce se opôs seriamente e bateu-lhe o portão. Mas o eufórico homem, atormentado pelo desejo, não conseguiu afastar-se. Meteu o dedo na campainha e insistiu várias vezes. Em vão, quase desistiu, chegando a ensaiar uma desolada subida de volta pela ladeira. Mas a libido falou mais alto. Desceu novamente e resolveu pular a grade. Para a sua infelicidade, conseguiu, dando de cara para o doberman que lhe enfrentava rosnante. Apavorado com a maldita surprêsa pulou de volta sobre a grade, mas sua opulenta barriga tornou-o desfavorável na corrida com o cão e aquele foi direto no seu traseiro. O homem urrou de dor e depois de cair no outro lado deu partida a uma formidável carreira ladeira acima. Dia seguinte, bem cedinho, um menino batia à porta e chamava por Dirce. Tinha um bilhete com recado do soldado:
_Meu morzinho. Me desculpe de ontem. Queria te pedir um favorzinho. Não pode dar uma chegadinha aqui em casa pra fazer um curativinho? É que meu bumbum tá doendo demais e tô com medo de infeccionar. Só essas suas mâozinhas gostosas pra curar ele. Beijim.
Claro que a môça, enojada, deu por fim o romance e agora sem o Aquiles e com uma série de enamorados na fila, partiu logo para outro. Depois outro e logo depois um outro e assim foi construindo uma bela carreira daquilo que se chamava, na época, de Maria Maçaneta. É que nenhum deles demonstrava querer manter um relacionamento duradouro. A moça, então, sentindo-se envergonhada e insegura, aceitou retomar o namoro com o Aquiles, o qual vivia a observá-la de longe, os olhos tristes e curiosamente mais desejosos. Mas o retorno já não foi tão perfeito porque o rapaz estava magoado e já não se mostrava tão gentil como antes e Dirce, insatisfeita e acostumada com o “mal feito”, vez em quando dava uma escapulida.

III – Se Dirce agia com uma meia discrição, Dona Sofia se esforçava ao máximo para não deixar que fosse abalada sua reputação. Seu modo sério e sua figura austera tornavam-se uma barreira à aproximação de candidatos. E eles não eram poucos. O perfume de uma viuva atrai gente de longe, principalmente quando se trata de uma mulher com bons dotes físicos e financeiros. Esperta, porém, ela sabia comandar com muito jeito suas maneiras quando alguém lhe interessava. De habitual só existia mesmo o Dr. Sandoval. Como disse, ele era um visitante assíduo. Às vezes levava a mulher, outras vezes comparecia sozinho. À noite, porém, via de regra por volta das onze e meia, ele aparecia num taxi. Dirce já dormia e Sofia era quem lhe abria a porta. O táxi retornava por volta de 1:00 hora e ele partia, sendo observado pela amante da janela semi-aberta, por traz da cortina. A mulher se envolveu também, certa vez, com um corretor da bolsa de valores. O rapaz era casado e teve com ela encontros escondidos em motéis. A relação durou apenas o tempo para matar a curiosidade e o desejo passageiro de ambos. Um gerente de banco que a cortejava com muito cuidado, receoso de perder a boa investidora, acabou por ceder ao encantamento. Entretanto, era péssimo na relação íntima, revelou-se grosseiro e muito pouco romântico, o encontro que acontecera de mau jeito dentro de um Renaut na Praia de São Conrado foi o último e culminou com o fechamento da sua conta bancária naquela agência. Dona Sofia tinha alguém que lhe tocava de modo especial. Era um médico jovem, que lhe fora recomendado pelo Dr. Leônidas. O rapaz era noivo e tinha uma carreira promissora como otorrino segundo seu colega mais velho. Sofia insinuou-se várias vezes, mesmo durante os exames mas o médico permanecia distante, fingindo ignorar a intenção da senhora. Certa vez, entretanto, não se sabe o que deu no rapaz e ele cedeu beijando-a convulsivamente. No consultório, de portas fechadas, ela despiu-se descontrolada, já que ansiava por aquilo há muito tempo e uma relação sexual ocorreu ali mesmo. Depois daquilo tentou novamente outros encontros, mas o doutor, talvez por arrependimento ou por vergonha, tratou de sumir da vida da mulher, tanto a nível amoroso quanto profissional.

IV – Se a vida sexual da Dirce era meio discreta e a da Sofia quase sigilosa, a de Lory era um verdadeiro escândalo. Por não ser contida no âmbito da casa, vagabundava pelas ruas e, quando no cio, parecia que era a preferida da cachorrada do bairro. Cansamos de ver aquela cadelinha branca e bem tratada sendo rodeada por todos os tipos de vira-latas. Grandes ou pequenos, ralos ou peludos, gordos ou sardentos, dava até pena. Mas Lory também tinha a sua preferência. Tratava-se de um cotó pequenino, malhado em branco e marrom, muito ágil e que pertencia justamente ao dono do cortiço onde habitava o Aquiles. A preferência se notava porque era com ele que ela se unia mantendo-o preso. Especialistas dizem que a cadela escolhe o pai através desse artifício. Impedindo-o que ele se desvencilhe por meio de uma inchação da genitália, dá-se o tempo necessário para que o líquido espermático permaneça no canal afim de lograr a concepção. O canal vaginal, segundo os biólogos, desce em diagonal, fazendo com que o esperma dos cães anteriores escorram para fora. E assim a Lory engravidava sempre do Marrom, trazendo um transtorno para Dona Sofia que tinha um enorme trabalho para se desfazer das crias.

Mudei-me do bairro logo no início da década de 70. Uns 10 anos após eu costumava passar pela rua, de carro e já não me lembrava daquelas pessoas, muito menos da Lory. Um dia porém, tive que deixar o veículo enguiçado numa oficina e descer a ladeira a pé. O contato direto com a rua, a visão das casas e chalés que não sofreram mudanças em suas aparências me transportou ao passado e ao tempo de menino em que lá vivi. Uma saudade enorme abateu-me. Cada pedacinho daquele trecho fazia-me recordar de momentos bons ou ruins, de fatos que alegraram-me ou entusiasmaram-me. As lembranças da infância tem geralmente um sabor agradável, pois refletem a alegria de viver própria dos primeiros anos. Ao passar pela casa amarela, diminui o passo e olhei demoradamente em direção a ela. Já não estava tão bem cuidada e me parecia menor. O jardim dava a impressão de ter sido desbotado. No peitoril da janela Sofia descansava os braços. Estava mais gorda, os cabelos agora bem mais brancos e mal penteados. Não usava pintura e haviam rugas. O olhar continuava triste mas não mais compenetrado. Fitou-me com simpatia e com um sorriso discreto. Claro que não me reconheceu. Apenas apercebeu-se de minha curiosidade e ficou esperando algum contato. Sentada na escada, calças jeans larga e uma blusa de algodão decotada e sem mangas, Dirce reagiu da mesma forma. Também engordara e o rosto mais parecia uma carranca embora também exibisse um sorriso de enorme simpatia. Próximo à grade, um cachorrinho ou cachorrinha, quem sabe, branca e da mesma raça da Lory. Presumo que não fosse a Lory porque com certeza ela não teria vivido tanto tempo. Talvez uma de suas crias, ou talvez uma aquisição semelhante para encobrir a perda da outra e manter tudo sempre igual.

Já se passaram mais de 20 anos daquele reencontro. Mas nunca o esqueci. Só agora medito sobre ele. Naqueles primeiros anos da década de 80, certamente a vida amorosa já não era a mesma para as duas mulheres, embora a vida em si tenha se mantido imutável. Eram as mesmas pessoas, a mesma casa, o mesmo jardim e com boa vontade o mesmo animal de estimação. Não havia porém o mesmo orgulho, a mesma vaidade, o mesmo requinte e, a julgar por isso tudo, não havia também a mesma ambição e as mesmas expectativas. Havia apenas, em função daquelas mudanças, um aumento da simpatia. E quanto aos amores do passado? Gostaria de adentrar-lhes no íntimo para saber do irrevelável, ou seja, do balanço que fazem as mulheres em geral quando se recordam do passado amoroso. Se houveram remorsos, frustrações ou glórias, se lhes deixaram raízes aqueles doces momentos que embora furtivos puderam ter-lhes feito bem e gerado uma sadia e vigorosa fonte de vida e de sonhos. Os homens, com certeza, as teriam esquecido. Elas figuram somente como números em suas vidas. Pode ser que se lembrem casualmente e quem sabe nem se recordam das delícias que aqueles instantes lhes deram. É provável que se apeguem sobretudo à confirmação de suas virilidades. Marcaram goals, não importa se foram bons ou ruins. Mas perderam os jogos e nem sabem disso. Perderam porque deixaram de explorar o que elas tinham de melhor. Algo bem no fundo de seus sentimentos, um mistério insondável a que só teriam acesso aqueles que lhes penetrassem de verdade. Deixaram de fora o mistério que habita profundo em suas almas. Alguma coisa que produza um prazer bem maior do que o carnal. Pois que imponderável e por isso inesgotável. Um néctar precioso muito bem guardado nos recônditos do espírito feminino, só degustável por aqueles que tem o raro poder e a sabedoria de conquista-lo. Talvez o sorriso simpático e enigmático das mulheres tivessem tido essa intenção. Uma estranha expressão de vitória, ao jeito delas. Talvez quisessem me dizer isso. Acho que Lory, somente ela, chegara perto, pois com a vantagem do instinto conferida aos animais, elegeu o Marrom, sabe Deus porque.


Julho de 2003
Daniel Carrano Albuquerque
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