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Contos-->F i m d e T a r d e -- 24/01/2000 - 23:24 (Daniel Sampaio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
F i m d e T a r d e

I
Contam-se cinco anos desde que Anselmo deixou família e amigos em Brasília, indo residir em Natal. O próprio denominou a atitude como um exílio voluntário. Tempo de viver um pouco para si, alegou. Quem bem o conhecia tinha a exata compreensão de que para um homem de quarenta e oito anos, divorciado, de relações truncadas com o único filho e tendo já colhido os frutos de uma bem sucedida carreira como crítico literário em diversas publicações de peso, soava como alternativa bastante salutar recolher-se ao aconchego das mais belas praias do litoral nordestino.
Durante os dois anos subseqüentes à partida, manteve contato com o filho, a ex-mulher e um círculo limitado de amigos. Inicialmente, falava-lhes por telefone. Mais tarde, tendo concluído um rápido curso de informática, passou a preferir quase que exclusivamente os e-mails. Comunicar-se por escrito tinha a vantagem de que era possível esmiuçar as sensações, divagar sobre os sentimentos e deixar correr na tela o texto fluente desenvolvido no antigo ofício e que insistia em não perder. Irritava-se com as curtas respostas que recebia, sempre aparentando terem sido escritas com pressa, como se os subscritores estivessem a libertar-se de um encargo. Decidiu poupar a todos e furtou-se de qualquer comunicação por longo período, tendo retomado somente nas últimas festas do ano que se passou, com mensagens simples e formais, respondidas da mesma maneira. Festas, aliás, passadas por ele na solidão de um amplo apartamento à beira-mar, invadido pela alegria inclemente dos que celebram de forma estéril e ruidosa. E não são poucos.
No dia dois de janeiro do presente ano, consumido por uma depressão intensa, sentou-se diante do computador e redigiu a seguinte mensagem, a qual foi enviada para todos os que constavam de seu catálogo de endereços virtuais:
“Não me deterei em maiores explicações. Há em mim um cansaço intolerável de tudo isso. Não me importo com o que possam pensar. Escrevo, não por resignação, tampouco como súplica. Apenas advirto. Nos próximos dias, vou suicidar-me. Não sei por que instrumento, mas buscarei um alternativa que não suje o azulejo branco. Deixarei a louça lavada e guardarei as camisas passadas. Não poderão julgar-me a organização. E se é dela que agora falo, é para não dizer de todos vocês. Anselmo.”

II
Passados dez dias, não recebeu qualquer resposta. Imaginou se estariam todos em férias. Chorou bastante e, no mesmo dia, decidiu.
Tendo alcançado um praia deserta um pouco antes das cinco horas da tarde, Anselmo entrou no mar com duas placas de chumbo nas mãos, cada uma pesando algo em torno de quatro quilos e ligadas aos seus tornozelos por fios de náilon reforçados. Sentindo a água atingir-lhe os quadris, soltou as placas. Sorriu. A maré subiu plácida até que Anselmo não mais pudesse ser visto. Na manhã seguinte, foi encontrado seu corpo por dois surfistas, que chamaram imediatamente a polícia. Não seria necessário o laudo pericial apontando o suicídio caso houvesse sido notado que na pele que cobre os tornozelos não havia qualquer marca. O corpo não se debateu, em momento algum desejou opor-se à deliberação do espírito.

III
Coisa triste é a tecnologia. Por uma falha do provedor de seu e-mail, Anselmo não recebera qualquer mensagem nos últimos quinze dias. Dois dias depois de sua morte, estavam lá as mensagens recebidas. “Matou-o a tecnologia!” - afirmariam alguns. “Soubesse de nossas mensagens, haveria de ponderar e retroceder” – diriam outros. No entanto, jamais vieram a saber. Apenas um dos amigos de Anselmo, avesso a funerais, mas entendido em computadores e sabedor de certas manias do falecido, desconfiou que o motivo do suicídio consumar-se talvez fosse justamente o teor de alguma resposta àquela mensagem de advertência, que na verdade representava um pedido de socorro, enviada pelo amigo dias atrás. Decidiu investigar, mais pelas qualidades de internauta curioso do que por um ímpeto amical póstumo e desnecessário. Não precisou tentar muito para adivinhar a senha e ter acesso às mensagens. Leu todas, percebendo pelas datas de chegada que estavam atrasadas, não tendo jamais sido lidas pelo morto. Ainda assim, prosseguiu e leu-as todas. Duas em particular despertaram-lhe a atenção:
“Anselmo,
Jamais irritou-me tanto uma correspondência virtual. Chego a ter raiva desse computador. E o que dizer de você? Ainda bem que teve o bom senso de esperar as festas passarem para enviar-me mensagem tão absurda e deprimente. Tenho certeza de que você não fará nada e estará bem vivo agora para envergonhar-se. Tivesse eu recebido isso antes do ano novo, adoeceria. Não me pregue mais peças. Escreverei mais, em breve, pois preciso sair agora para buscar nosso filho na casa de um colega. Você acredita que ele bateu o carro novamente. Cinco meses de carteira e já bateu o carro duas vezes! Dessa vez é ele quem vai pagar. Eu não posso com isso. Um beijo, Cecília.”
“Meu pai,
Sei que há muito não nos falamos, mas peço que não me reprove com esse tipo de ameaça. A culpa não há de ser só minha. Tenho dezenove anos e proíbo-o terminantemente de impor-me outra chantagem emocional dessa natureza. Amo-te muito, meu pai. Tenho certeza da recíproca e deixemos a tragédia para os romances dos quais você tanto gosta. Sabe que há poucos dias, uma senhora destruiu a traseira do meu carro num estacionamento público!? Eis o cúmulo do azar: duas batidas em cinco meses! Que fazem as mulheres a dirigir? Estabanadas! A propósito, aproveito a oportunidade para pedir que deposite em minha conta algum extra para cobrir os prejuízos da batida, já que a doidivanas recusa-se a reconhecer culpa. O valor com o qual terei de arcar é de seiscentos reais, mas qualquer soma próxima será bem recebida. Obrigado e um beijo, Carlos.”
O amigo marcou as mensagens e, à sua maneira, prestou honras de funeral, apagando-as da caixa postal. Havia outras, que também apagou, em sua grande maioria condenando o suicida pelo anúncio, visto como de muito mau gosto. Várias não davam crédito a Anselmo e, ao mesmo tempo, procuravam consolá-lo indicando-lhe que buscasse ajuda médica ou mesmo tentasse reaproximar-se da família, que ainda o amava, “apesar de tudo”. Naquela caixa de entrada, estava o resumo de quase uma vida de relações pessoais colecionadas pelo morto. Ali, era Anselmo tratado novamente como mais detestava, com uma rapidez ríspida, como se a profundidade de suas sensações incomodasse, atravancando a rotina de afazeres dos que agora lhe respondiam. Em tempo: cogitando que Anselmo pudesse ter lido as ditas mensagens, não teria ele caminhado mais adiante quando adentrou o mar com as placas de chumbo, deixando para largá-las quando a água lhe batesse não os quadris, mas quem sabe os ombros? Quem sabe a boca? Seus amigos e familiares teriam assim inquietado um espírito que partia resoluto e sereno. Não leu. E essa foi toda a sua sorte. A sobrevida de trinta minutos lhe garantiu a beleza suprema de um fim de tarde em Natal.

daniel sampaio, em 14.01.2000
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