Um curto e estridente frigir de pneus anuncia o impacto. O choque leva a massa humana imediatamente ao chão, indigente.
Novo frigir de pneus e fuga, irresponsabilidade.
O corpo estatelado manifesta seus últimos movimentos, espasmos.
Transeuntes apressam-se para ver o quadro, correria.
O crânio está partido. Sangue da boca, ouvido e nariz gotejam no asfalto da tarde escaldante de agosto, olhos abertos. Inerte, maltrapilho, o corpo é admirado pela gente curiosa. Hipócrita.
Fascínio coletivo.
O corpo é coberto por jornais rotos. Alguns discutem a culpa. A maioria apressada contempla a cena como quem admira um quadro abstrato, cada um a seu modo. Ouvem-se explicações funestas. O mais exaltado dá notícias de tudo, conta detalhes inventados. Torpe.
A Polícia chega, ordena, pergunta. O exaltado desaparece do local. Poucos se dispõem a falar. Sem placa, sem testemunhas, sem interesse. O policial de óculos escuros faz anotações num bloco de papel e investiga os bolsos do morto. Sem identificação, o corpo pode ser confundido com o de um animal qualquer. Sem nome, sem identidade, sem importância.
O corpo permanece inerte. Lentidão no trânsito. Ninguém quer perder o espetáculo. Ambulantes aproveitam o tumulto para esgotarem suas latinhas e vendem muito. Vez ou outra a folha de jornal que cobre a face é retirada por alguém mais curioso. Inútil, ninguém o reconhece.
Dois homens descem do rabecão que chega três horas depois. Indiferentes, jogam o corpo na carroceria. Falam alto, fumam, riem, fazem galhofa.
O cadáver é levado. O sangue marca o local onde o bicho-homem perdeu a vida. Mas as marcas serão apagadas naturalmente pelo tempo e reaparecerão noutro lugar da cidade. Para delírio dessa gente apreciadora do fabuloso espetáculo da morte.
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