“Este é o lugar onde a morte se alegra de socorrer a vida.”
(Dístico da sala de Anatomia da
Universidade de Viena – Áustria)
Olhando por cima dos óculos, o velho professor encara com frieza os novos alunos, massa branca a movimentar-se lenta. Ouvidos atentos, olhos muito abertos para simular indiferença. Alguns começam a ficar pálidos, trêmulos, tentativa de disfarce. O convite é para aproximação. Reservados, os mais corajosos dão um passo à frente. O professor insiste e os estudantes, aos poucos, levados pela obrigação, apertam o círculo. No meio, a mesa com o homem-formol. Bisturis, pinças, tesouras, todo o material cirúrgico. O mestre, pegando numa das orelhas do defunto, falando em cartilagens, vasos sangüíneos, direção do corte, zás..., levanta a orelha e a faz passar de mão em mão.
Depois de uma hora de aula teórico-prática, convida um dos alunos para repetir a cirurgia com a segunda orelha. Houve um zunido na sala. A ordem parecia ter sido “um passo atrás”. Silêncio sepulcral. Os olhos fixos nas pontas dos sapatos brancos que, compassados, levantavam e baixavam sem bater no solo. Minutos de terror. O mestre aguarda paciente o voluntário; depois, apontando com a pinça, escolhe o último, o mais encolhido. Sacudindo qual pêndulo, vem a contragosto, toma do bisturi e seguindo as palavras do professor, retalha a segunda orelha. Põe a mão no estômago, pede licença e vai em direção ao banheiro. Um sorriso complacente aflora nos lábios do sexagenário que tem a turma nas mãos pela orelha de um homem. Como se nada tivesse acontecido, aponta para outro aluno que deverá continuar a explanação. Quando as duas horas de aula terminaram, o último a sair da sala pega, com certo nojo, uma das orelhas, esconde-a e, disfarçadamente, a coloca no bolso da jaqueta de seu melhor amigo.