Ainda era madrugada quando o homem despertou. Esticou seu corpo esquálido, levantou-se e se dispôs a dobrar cuidadosamente o jornal e um resto da caixa de papelão que lhe servira de cama naquela noite fria. Com um pedaço de trapo qualquer, amarrou seu embrulho e o escondeu numa fenda entre o muro do hospital e uma caixa de ligações da companhia telefônica. Saiu precipitadamente de sob a marquise momentos antes da porta de enrolar da mercearia ser aberta com estardalhaço. Foi visto rumando em direção à praia.
Horas mais tarde, num terreno baldio, junto às caçambas de lixo e, disputando comida com os cães, estava o mesmo homem.
Pessoas passavam apressadas em direção ao ponto de ônibus. Alguns estudantes, em farda de ginásio,atiraram, entre risos de escárnio, um enorme pedregulho que bate e ecoa na parede de ferro de uma das caçambas fazendo os cães saltarem para o lado, os ratos pularem para seus buracos e o homem disparar para o meio da rua.
- "Filho da puta !", grita contra o homem, por entre o guincho das rodas do carro importado no asfalto, um sujeito em mangas de camisa que esmurra o espaço. Buzinas em estardalhaço desfazem a cena.
O homem se dirige ao aglomerado de pessoas presas no passeio, que não prestaram atenção à cena. Com a mão estendida e o olhar caído no chão, não vê os olhos consultarem relógios,vasculharem as bolsas, admirarem o chaveiro.
A manhã passa e a tarde avança...Choro de criança, gritos do verdureiro, apito de guarda,sirenes de ambulância.
A cidade pulsa sob seus próprios estertores. Agoniza suas dores.
O dia diluindo-se espera a noite vestida de luto. Os gritos diurnos emudecem. Tomam seu lugar os sussurros dos amantes, os ruídos inaudíveis dos gatunos, o cicio de grilos, o ressoar dos pés de um retardatário.O trilar do apito d algum guarda-noturno reverbera pelas paredes dos prédios.
Num céu sem estrelas, sem luz de luar, sobra-nos o silêncio cruel duma sociedade muda a zelar o sono eterno do homem deitado sob uma marquise da cidade adormecida...