“Era uma vez”, não! não é uma boa maneira para começarmos esta história; não ! não é uma história. É uma família ! E família todos sabem, é um caso a parte.
Assim como há razões que a própria razão desconhece, assim também há situações que só uma boa família pode explicar.
E como em todas as outras famílias, não nos faltarão um cachorro, um avô ranzinza, um vizinho, o cunhado e se me perdoarem, sonhos absurdos e um pouco de pimenta, que nos olhos dos outros, claro, é refresco.
Em todas as famílias a maior parte dos acontecimentos se dá na cozinha; as decisões mais picantes, as notícias mais saborosas e os desejos mais doces, estão lá no meio às cebolas, quitutes, caldas e fricassês.
E aqui, deixando toda esta convers, estamos nós, na cozinha de Dona Glória, casada há trinta anos com o Sr. João Romão, português típico, mas que abria mão do seu bom bacalhau por um prato de feijões pretos e carne seca – comida comum em Copacabana, por isso, mais em conta (frase preferida do Sr. João Romão), como todo português, fez fortuna em cima de mesquinhez (deixo claro querido leitor: a rima é puro acaso).
O Sr. João Romão confiria a lista do supermercado todos os dias para verificar se não havia itens supérfulos. As compras, segundo ele, deviam ser sempre mais em conta que a última.
Mas, Dona Glória sempre conseguia introduzir ao meio do essencial, uma garrafa de vinho do porto e uns quilinhos de bacalhau, driblando assim a esperteza de seu marido.
Naquela manhã de Domingo, tudo esta nos conformes, tudo corria às mil maravilhas, mas (e este mas está em todas), estouraram na cozinha as duas filhas do nosso lindo casal, Capitu e Rita, em guerra verbal de tirar o fôlego.
- Capitu, por que você sempre estraga meus namoros ? Um dias destes, você morrerá em meio a seu próprio veneno.
Rita, era destas moças que possuem todas as graças femininas, mas, não é ardilosa como a irmã, que possue um olhar amortecedor.
E, duas belas sedutoras, assim como dois bicudos, não se beijam.
- O mundo é dos espertos minha querida ! – Capitu sempre respondia com frases feitas, mas carregadas de veneno.
A discussão, porém, foi interrompida e encerrada pelo avô ranzinza, João Amaro que perguntou pela empregada e o almoço.
Mas Bertoleza, a empregada, se pendurou ao telefone com o namorado Jerônimo, home casado, mas que desfrutava uma aguardente com quitutes não com sua esposa, mas sim com Bertoleza, pelos bares da cidade.
A família desprezava esta relação, mas Bertoleza aceitava um vergonhoso salário, e esta era para João Romão uma ótima virtude: a conformidade com sua avareza.
Então, deixando de trololó, Capitu e Rita preferiram aprontar juntas o almoço, caso contrário, teriam de suportar o mal humor do avô que considerava sagrada a hora de seu caldo com farinha - o resto de seus dentes, não lhe permitiam mais que isso.
Enfim, o almoço. Hora sublime. Eu nunca vi uma mesa tão farta e diferente. Ia do bacalhau ao vatapá, do vinho à caipirinha e da farinha ao arroz com legumes.
Para qualquer outro, até para mim, seria indigestão na certa, mas para a família do Sr. João Romão, era mingau.
Bertoleza a esta altura, sonhava em se sentar ali, mas nem preciso dizer que João Romão torcia o bigode. (É caro leitor, em quase pleno século 21, onde se pode ser o que quer, vestir o que quer e comer o que quer, uma negra ainda não pode se misturar a alguns brancos. Curtamente direi: Bertoleza comia o que sobreava).
Capitu e Rita, nisso discordavam unidamente e o santo coração de dona Glória chorava calado.
Sr. João Romão odiava reclamações no almoço, pois elas causam doenças que custam médicos, etc e tal. Aliás, para ele a melhor vida é mesmo a dos antropófagos, que comem a si mesmos e não gastam com comidas, nem velórios.
Após o almoço, sem sobremesa, o avô saía para o bingo com um amigo, também ranzinza, assim os dois ficariam calados, dentro de um silêncio infeliz.
O amigo era Bentinho que foi apelidado carinhosamente pela família de “Casmurro”. Seu “oi” era um resmungo sem sentido. E não se deve perder tempo falando de carrancudos.
E é assim que começa e termina o dia na casa de dona Glória e Sr. João Romão.
Uma briga de Rita e Capitu, que no final, sempre estão juntas; uma reclamação de João Amaro, esperando Casmurro para o bingo; Bertoleza e seu namoro adúltero, combinando a seu salário e o casal perfeito Glória e Romão: um coração enorme e uma mão fechada ao extremo.
Vocês devem estar perguntando do cachorro, do vizinho e da pimenta, não estão ?
Bem, o cachorro, morreu de fome, claro, João Romão PROIBIU gasto extra e o coitado do cão, só escapou de virar a mistura do almoço por suplício de dona Glória.
Agora vamos à pimenta: Ela esteve aqui, ou melhor, lá na cozinha, entre Capitu e Rita, e dona Glória e João Romão. Hum ! ótima refeição para um canibal, mas eles são devorados apenas por seus corações temperados por sentimentos.
Deixem agora que eu me apresente, aliás, não sei quem devo apresentar, eu ou minha janela. É ela que me conta tudo sobre esta família há trinta anos. E aqui estou eu, o vizinho, bisbilhoteiro.
Admitirei ! Um homem só, sem família, cai pesadamente sobre a inveja. Inveja deste planeta familiar, onde poeticamente, o pai se torna o universo e a mãe a terra.