Já havia se passado muito tempo desde a primeira vez em que Denis ouviu falar da mulher loira que assombrava o banheiro da escola . Naquela época, ele ainda era apenas um menino de sete anos que cursava a primeira série na Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Ricardo Linhares, em Vale Verde.
Mesmo assim, ainda se lembrava da expressão jocosa de Everton, do quarto ano. Everton era gordo e cheio de sardas espalhadas pelo rosto. Quando sorria, parecia estar fazendo uma careta, como se alguém houvesse pisado em seu pé:
-Moleque, você que é novo, tome muito cuidado quando for ao banheiro.
-Por quê?
-Porque a mulher loira pode te pegar.
-Mulher? Que mulher?
-Você não sabe? É uma mulher loira, morta, que mora lá nos banheiros. Ela é toda magra e de olhões arregalados. E tem algodão no nariz e nos ouvidos - e, para dar maior ênfase a seu relato, Everton arregalou os olhos e pôs-se a andar com os braços estendidos. Os outros meninos riram, e Denis riu também. Ali, na hora do recreio, com o pátio cheio de crianças e o sol das dez horas da manhã sendo refletido nos tijolos cor de chocolate da escola, aquilo realmente soava como engraçado. Nada assustador.
Entretanto, Denis ainda se lembrava de quando, mais tarde, naquele mesmo dia, havia pedido à professora para ir ao banheiro. O pátio deserto, sem um ruído sequer, de forma que ele podia escutar o som de seus próprios passos. E o pavor que havia tomado conta dele na entrada do banheiro. De súbito, toda a conversa da hora do recreio havia vindo a sua cabeça. E ele tinha certeza de que a mulher loira estaria esperando por ele logo ali, atrás da porta. Ou atrás da parede que ocultava os vasos sanitários. Imagianava-a muito mais assustadora do que Everton a havia descrito. A mulher loira de Denis tinha dentes sujos de sangue e unhas bem compridas. Trajava um vestido branco, provavelmente o mesmo com que havia sido enterrada. E, das narinas, além de algodão, saíam filetes de sangue coagulado.
Denis acabou por sair correndo dali, indo se aliviar nos fundos da escola, atrás de uma grande mangueira. A diretora, Dona Filomena, gostava de comemorar ali o dia da árvore, todos os ano. Dizia que as árvores eram as melhores amigas das pessoas. Denis ainda não a ouvira dizer isto, mas com certeza concordaria com ela naquele momento.
"Uma mulher loira, morta, que mora lá nos banheiros."
Depois daquele dia, ele havia evitado totalmente o banheiro da escola. Nunca mais se dirigira àquele local, mesmo acompanhado por outros colegas de classe. Até após as aulas de educação física, ele preferia se segurar até chegar em casa, pois morava apenas a seis ou sete quarteirões da escola. Até quando, durante o colegial, Maria Alice havia proposto que os dois fossem a um dos banheiros, ele havia desconversado e dito que não estava se sentindo muito bem.
Só que, agora, as coisas eram diferentes. Ele já estava com dezenove anos e o banheiro da escola havia sido substituído por um dos muitos banheiros da Cidade Universitária, em São Paulo. A mais ou menos quatrocentos quillômetros de Vale Verde.
Então, por que estava com tanto medo?
Era curioso que, em um mês de aula, ele ainda não houvesse se deparado com aquele problema. Também pudera! Após tantos anos sem entrar em banheiros, Denis havia desenvolvido uma resistência natural a eles. Raramente sentia necessidade de urinar durante o dia.
Mas, naquela tarde, estava difícil. Sua bexiga doía incrivelmente e ele sabia que, se não urinasse logo, seria capaz de molhar as calças.
No fundo, aquilo era ridículo. Ele, um homem de dezenove anos, com medo de um fantasma. Seria como dizer que tinha medo de escuro. Ou que acreditava em Papai Noel. Denis riu, imaginando o que seria dele se os veteranos soubessem que ele já estava há 15 minutos parado na porta do banheiro sem ter coragem de entrar. Seriam capazes de espalhar por todo o campus.
"Ela é toda magra, e de olhões arregalados. E tem algodão no nariz e nos ouvidos."
Sentiu uma pontada no baixo ventre. Precisava urinar naquele exato instante.
Respirou fundo e entrou.
***
O banheiro principal da Faculdade de Arquitetura era grande e com vários cubículos, cada um contendo um vaso sanitário. Havia também diversos mictórios, pregados na parede. Foi para um destes que Denis se dirigiu, procurando não olhar muito para os lados.
O alívio que sentiu ao urinar só foi ultrapassado pelo de não encontrar, ali, nada de assustador. Só um banheiro comum, de ladrilhos amarelos e azulejos brancos. Realmente, era tudo imaginação. Tudo bobagens de crianças.
Ele já estava lavando as mãos quando ouviu, do último cubículo, partir um ruído semelhante a um gemido. Seu coração alterou o ritmo. Desligou a torneira e esperou, em silêncio.
O ruído se repetiu.
Denis começou a caminhar devagar, em direção à saída do banheiro.
" Uma mulher loira, morta..."
Caminhava de costas, procurando não tirar os olhos de onde havia partido o som.
"Ela mora lá nos baheiros..."
A porta do cubículo se abriu, e dele saiu uma mulher. Denis sentiu os cabelos de sua nuca se arrepiarem e seu esfíncter relaxar.
A mulher loira caminhou para ele rápido, com as mãos em garra e um riso de lunática estampado no rosto. Era branca como papel e exibia, no rosto, manchas cinzentas, indicadoras do início de um processo de decomposição. O vestido branco, rasgado. Algodão ensanguentado saía de seu nariz. Não falava. Emitia sons estranhos, um pouco roucos, semelhantes a grunhidos.
Denis perdeu os sentidos.
***
A primeira coisa que ele viu ao recobrar a consciência foi o rosto de vários de seus colegas de classe e de alguns veteranos, estes mais preocupados que os demais;
-Denis? Você está bem, cara?
-Acho que sim. Eu...- olhou para os lados e surpreendeu-se ao ver que estava em uma maca no hospital universitário.
-Nós sabemos o que aconteceu, cara. E queremos te pedir desculpas.
-Desculpas? Pelo quê?
-Pela brincadeira de mal gosto que nossos colegas fizeram com você - explicou um dos veteranos.- Todo ano, alguém faz esta brincadeira com os calouros. Acho que, desta vez, foi a Kátia, do terceiro ano, que se disfarçou de noiva do Frankenstein.
-Quer dizer que todos vocês sabiam?
- Só os veteranos. Sabe, nós até evitamos ir àquele banheiro nesta época. No ano passado, o Paulinho se disfarçou de gorila. O que teve de calouro saindo correndo com as calças abaixadas...
- Então era brincadeira? Só brincadeira?
Os veteranos se entreolharam.
-Sim. Só um trote. É que ficamos preocupados. Um outro calouro encontrou você caído lá, e te trouxemos para cá o mais rápido possível . Acho que o susto foi muito grande. Estamos te pedindo desculpas.
Denis, a partir daquele dia, tornou-se outra pessoa. Nunca mais teve receio de ir a banheiros, nem tornou a pensar na mulher morta que o assombrara desde a infância.
Ele e seus colegas veteranos nunca souberam que, no dia em que Denis viu a mulher no banheiro, Kátia, do terceiro ano, havia ficado em casa em virtude de uma forte gripe.