Por falar demais era conhecido como o homem com o calo na língua. Todos o
admiravam e sentiam prazer em dialogar com ele que de tanto interrogar a vida,
descobriu segredos de Deus. Por isso para ele não havia paredes, comunicava-se
de diversas maneiras, em todos os tempos, telepaticamente e em sonhos. Por gostar
de uma boa conversa, teve que tratar das cordas vocais e no momento cuidava do
problema do calo na língua. Durante o tratamento, entediado por falar sobre doenças,
sentiu que precisava de conversa nova. Fugiu do hospital. Logo encontrou-se com
Gregório de Matos que estava indignado, sentindo repulsa “(...) Do que passeia
farfante, / muito prazeroso de amante, / por fora luvas, galões, / insígnias, armas,
bastões, / por dentro pão bolorento:”.
– Não se cale nunca meu amigo – dizia o homem com o calo na língua – fale e não
se importe com apelidos, denuncie mesmo, não use armas ou lutas, mas fale
Boca do Inferno, diga em versos sua revolta e cante o Cristo e o sensual.
Esse encontro muito inspirou o poeta que continuou sua sina. Despediram-se.
Nem bem disse adeus, logo o bom falador encontrou-se com Dirceu, que declamava
para Marília numa fazenda mineira. Aplaudiu a performance e falou:
– Amem-se muito hoje, não deixem para amanhã as carícias e os abraços. O futuro
foi-me revelado, por isso escutem atentamente esse meu conselho:não desperdicem
um só instante.
Na despedida, sorriram naquele breve contato. A morte, a prisão dos Inconfidentes e
a escravidão entristeciam Castro Alves, que encontrou no tagarela um novo aliado e
parceiro para juntos declamarem o amor: “Teu amor na treva é – um astro, / No
silêncio uma canção, / É brisa – nas calmarias, / É abrigo no tufão;”. Como não podia
deixar de ser o falador foi logo afirmando:
– O progresso, poeta amigo, chegará um dia, – gesticulava o homem – a
industrialização, a tecnologia. A preocupação com o social, essa que você tanto
defende, continuará; graças ao exemplo que você dá. Agora, poeta eloqüente,
encontrar-me-ei com o Machado que corta a realidade com fina ironia e muita arte.
Perdoe-me por não esclarecer mais, estou com pressa, volto outro dia. Adeus!
Um momento de rara tertúlia aproximava-se, dois grandes amigos e interrogadores
da vida estavam esperando novo companheiro para uma conversa. E não é que
esperavam pelo homem com calo na língua!
– E então, Cubas! – exclamava Quincas Borba – não tardou eu ter vindo para o
plano eterno. Parti da sua casa, lembra-se? Agora você também está aqui.
– Acabei de escrever minhas memórias e vim ao seu encontro. E suas idéias
filosóficas Quincas Borba?
– Queimei as anotações da nova filosofia, mas a idéia, esta sim, ainda me
persegue: “a mais soberana de todas as filosofias”. Pena, meu grande amigo,
que não sei como continuar meu trabalho.
– Não sabia, caro Quincas, não sabia!
– Diga-me logo! Como continuar filosofando? Se não mais vivemos na terra
dos homens?
– Como defunto-narrador conheci alguém extraordinário e pedi que se encontrasse
conosco. É só pensar nele e ele aparece, quer ver?
– Salve, amigo Cubas! Oi, Quincas Borba, pensador do mundo!
– Vamos bem – disse Cubas – você continua, pelo que vejo, muito falador.
– Realmente, mas não estou só, encontro-me com vários amigos que não morrem.
Assim como vocês, vamos deixando exemplos para este mundo, sementes de
palavras. E é assim, Quincas Borba, que você continuará seu trabalho. Toda obra
importante é imortal.
– Seus conselhos me animam, retomarei os estudos do Humanitismo.
– Eu, quando jovem – disse Brás Cubas – também criei frases como essas: “acredite
em você, mas nem sempre duvide dos outros” ; “antes cair das nuvens que de um
terceiro andar” . E teve uma que aprendi na vida: “matamos o tempo, mas o tempo
nos enterra”.
– Belas frases, Cubas! Em seu nome espalharei elas ao vento, com o devido respeito
ao Machado que corta com fina ironia toda a hipocrisia do passado. Preciso ir agora
ao encontro de outros entusiastas escritores e artistas. Adeus Cubas, adeus Quincas!
– Até breve! – respondeu Quincas – Vá, mas leve consigo a idéia da minha filosofia:
“ao vencedor as batatas”.
– Digo mais, com sua permissão, é claro – a língua do homem com maestria falava
– encontrar-me-ei com jovens que querem mudar o mundo, revolucionar. Então,
direi a eles: “ao vencedor as batatas” e aos perdedores: bananas! Fez o gesto com
o braço à frente do rosto e o punho fechado.
Tão logo saiu, já deixou saudades. Mas era preciso partir, pois a ansiedade estava
aumentando a angústia dos jovens paulistas, pintoras, artistas e alguns escritores
com quem o homem com calo na língua encontrou muito papo. E dizia:
– Vocês não acham que o Brasil precisa é de muito mais progresso. Os Barões
fizeram a parte deles, agora é a nossa vez. Industrialização, um, dois, três... 1922.
Somos os soldados da arte, explosão, ruptura, meus amigos, destruição... Vozes
no plural convivem no Brasil e não se calam. Narram a mesma história em ângulos
destoantes. Marchem soldados da cultura, um, dois, três... Marcha soldado
trabalhador, marcha que o dinheiro acabou.
O grupo reunido concordava com o homem desinibido, pois eram todos falantes,
então discutiam com paixão. De todos, um em especial tirou um papel do bolso e
contou que era o rascunho de um poema seu: “Eu insulto o burguês! O burguês-
níquel, / O burguês-burguês! / A digestão bem feita de São Paulo! / O homem
curva! o homem-nádegas! / (...)Come! Come-te a ti mesmo!, oh! gelatina pasma!
/ Oh! purée de batatas morais! / Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas! / Ódio aos
temperamentos regulares! /(...)Fora! Fu! Fora o bom burguês!...”.
O calo coçava na boca do homem que logo falou:
– Perfeita a sua revolta Mário, muito bonito seu poema! E digo mais, sai fora oh!
banqueiro! Digo vivas ao operário, mas cadê o emprego? E agora vida, cadê o
indivíduo? F-R-A-G-M-E-N-T-O-U... Está doente? Então passa no Posto de Saúde,
mas leva a carteirinha e na fila conte até três. – Só três? Acho pouco. Conte até 2002.
– O mundo carece mudanças, – dizia Menotti – é confuso, mas como Juca Mulato
diz em um de meus poemas: “Esta vida é um punhal com dois gumes fatais: / não
amar, é sofrer; amar, é sofrer mais!”.
Oswald de Andrade defendia a arte e toda a simplicidade quando recitou um trecho
de seu manifesto: “(...)A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança. /
(...)A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição
milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.(...)”.
– O mundo adoeceu. – bradava o homem – Está numa UTI, pode morrer. Cuidado !!!
não morra sem antes tirar a identidade. Leve o número porque ele é mais importante
que o indivíduo. Serve o do CPF, mas cuidado com o Leão.
– Leão? Que nada companheiro! Estamos revoltados no momento é com um lobo,
ou melhor, Monteiro Lobato, que criticou nossa amiga Anita Malfatti. Daremos
uma resposta à altura, promoveremos a Semana de Arte Moderna.
As palavras de Mário entusiasmaram todos os ouvintes, e em especial...
– Escutem bem – continuou o sábio falante – eu vivi mais que todos vocês. Na
Idade Antiga fui uma criança esperta, criei deuses e multipliquei a vida no Olimpo.
Na Idade Média desacorçoei, adoeci nas trevas, tive muita fé, mas as fogueiras das
febres humanas arderam 95º e eu regredi. Reagi a tempo, acreditei em mim e naveguei contra monstros do pensamento e do atraso tecnológico. Descobri novos mares. Hoje
sou inquieto e compartilho com vocês o desejo de mudança. Vou estar lá na platéia da
Semana de Arte Moderna e me desculpem vocês, mas vou promover uma grande
falação. Muita, mas muita, conversa.
Foi uma semana agitada aquela, propiciou para a geração futura idéias novas e
incentivo para continuar uma luta que só havia começado. Satisfeito com tudo que
ouvira e falara, o homem rouco, quase sem fala, continuou sua viagem e encontrou-se
com uma turma especial de compositores e poetas. Sua fala precária, devido o calo
que doía, fez com que ele se comunicasse telepaticamente e, por conta disso, o fez
mais ouvir. De Gilberto Gil:
– “Não me iludo / Tudo permanecerá do jeito que tem sido / Transcorrendo /
Transformando / Tempo e espaço navegando todos os sentidos”.
– Bravo! Bravo! – limitava-se a dizer baixinho com dores no calo, mas no
pensamento seu diálogo continuava intenso. Foi quando Lenine disse:
– “Mesmo quando tudo pede / Um pouco mais de calma / Até quando o corpo pede
/ Um pouco mais de alma / A vida não pára”.
– Não pára mesmo, amigo Lenine – concordava Flora Figueiredo – “Roda mundo,
roda vida, roda vento. / Passa tudo, passa tanto, passa tempo.” Digo mais, meus
amigos, afloram pensamentos novos e me pergunto: “Que idéia é essa, / Que chega
descalça, / cabelos ao vento, / o peito desnudo, que desacata tudo / e me vira às
avessas?”.
Caetano Veloso dizia que era o tropicalismo e cantava afinado:
“Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Morrer e matar de fome, de
raiva e de sede / São tantas vezes gestos naturais / Eu quero aproximar o meu cantar
vagabundo / Daqueles que velam pela alegria do mundo / Indo mais fundo tins e
bens e tais”.
Ainda sorvendo as delícias das palavras de todos, o homem do calo na língua
recebeu um chamado urgente, era de um primo que necessitava desabafar.
Era o homem com o furo na mão que foi logo perguntando:
– Estou confuso, primo. Veja o que me aconteceu! Olha em minha volta quantas pessoas também com o furo na mão, estamos debaixo de uma ponte e somos todos irmãos.
– Estou vendo e não me assusto. Explico-lhe: você é fruto de um sistema político
que reprime o país. Seu pai o fez assim para deixar um recado. Um protesto contra
a repressão. Contra o preconceito.
– Sinto-me melhor. Vou me conformar, mas não me calarei.
– Isso mesmo primo! Mas me diga, como está seu pai, o Loyola Brandão?
– Vai muito bem. E o seu, como está meu tio?
– Está muito feliz e confiante em fazer parte de um processo de transformação
desse mundo. O Greiner, está muito bem!
Assim, despediram-se os primos. E com dores no calo da língua, o homem resolveu,
já sem nenhuma voz, voltar ao hospital para continuar seu tratamento.
Autor: Durval Filho, com a colaboração da professora Márcia e de um grupo de
alunos da Escola Estadual Pe. João Greiner.
Esse texto participou do concurso Nestlé Viagem pela Literatura, ano de 2002.
Pedia-se uma intertextualidade com os autores e obras citados, sem fugir ao tema:
Modernidade Brasileira: um diálogo entre raízes e rupturas na Arte e no
desenvolvimento industrial".