Impossível dormir: subcutâneas, camadas do meu ser ensaiam-se texto agitando a sintaxe imprevisível de suas futuras frases no incontrolável torvelinho de suas coceiras alucinadas e voluntariosas. Obedeço e assisto o parto, ou parto-me ainda mais em mais e mais estilhaços? Cada lasca pontiaguda de angústia malsabida exaspera-se e me corta e me esfola e me lacera a pele ensandecida e revoltada. Mas sono, nem pensar. Este monta guarda e faz-se sentinela e trila seu apito anunciando o que insinua seu pretexto e com texto ou sem vai-se tecendo interno e taciturno.
Por meu turno, assisto o parto e nada mais faço que aparar humilde o nascituro. Ver-lhe a face é sempre contemplar o inusitado, por mais que ultra-sonografias insones tentem dar-me pálida imagem do vindouro. Sem desdouro, espera e contemplação nobilitam o parteiro, ao mesmo tempo parturiente em susto e texto bebê, disfarçando em serenidade absoluta o desgrenhado cabelo de suas idéias e anseios. Quem os vê mal suspeita o desencontro quilométrico das camadas que jazem sob a pele descontínua de falsa ingenuidade. Sequer percebe serem um, sendo, como são, processo, produção, produto. Sequer percebe o próprio percebedor como uma de suas ocultas faces. E o produtor como um dos seus disfarces. Em suas inúmeras máscaras, toda essa gente finge acreditar serem diversos (e seguem prosas em suas presepadas). Uns fingem-se textos imperfeitos, mas assumem tal prepotência, que a soberba os domina e desfigura. Outros, nascem de inegável e ignota parceria: idéias imprevisíveis mesclam-se no subterrâneo tecido de que se entris-tecem. Outros mais, escondem de tal forma a coerência, que se pensa imediato chamar o analista de discurso ou o concurso de junta soberana de mil psiquiatras. E os que se fingem de inspirados e santinhos? Estes são os piores. Na sombra, quando a visão mal os divisa, implantam divisões, astúcias e intrigas. Texto que se apresenta penteado como um menino pronto para a missa de domingo melhor escoltá-lo cauteloso à cela da penitenciária ou do mosteiro, de onde deveria ter saído? De qualquer modo, se a coceira cessa e o texto sobrevive e o sono reencontra sua sina, então, ofereça o charuto orgulhoso aos amigos que vierem visitá-lo sobraçando o indefectível pacote de fraldas descartáveis. Abra o melhor champanhe e comemore. Especialmente se o robusto rebento, visivelmente mal-educado, fizer ecoar, livrando-se de uma das mamas, o mais sonoro arroto por cima das hipocrisias daquele fariseu que se diz amigo da família e, com voz imbecilóide, desfila gracejos gastos e sacode desvairadamente as bochechas sofridas do texto mal nascido. Ou bem nascido.
Quando o terceiro e doloroso parágrafo romper as gengivas do filhinho atônito, convém preparar-lhe o chazinho de erva-doce ou camomila. No mínimo, soníferos segredos da vovó, a infusão poderá devolver ao sono os três: o parteiro, que parte; a parturiente, que comparte o seio; e o bebê, que reparte com leitor e autor pequena parte do sentido. E, sentido, finge desconhecer o sentido de tudo aquilo e, antes de dormir, entremostra, hermético, ligeira e sutil possibilidade de leitura. Várias camadas em universos paralelos anunciam estilhaços do ser. Uma, entre tantas, a interpretação pisca o olho e não se sabe se é sono ou pretexto de paquera a novo texto. E cai no sono, exausta de si mesma.