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Contos-->Sótão, tesouras, porco.... -- 11/06/2000 - 20:52 (Marcia Lee-Smith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O marido colocou a tesourinha de unhas na gaveta do criado mudo e disse:
―Eu não quero mais que esta tesourinha saia daqui. Entendeu?
A mulher deu de ombros, com fastio. Só exigências, só prepotências. Eu quero, eu disse, eu avisei...
Em seu dia a dia ela já se cansava desta rotina insípida, e se pegava perguntando...Mas será só isso a vida?
Então ele saiu do quarto e ela se sentou na beira da cama, olhando a mala velha em cima do guarda roupa. A mala trancada fazia tanto tempo...O que haveria lá dentro?
―Bem??? O que tem dentro daquela mala?
―Que raio de mala ?
―Em cima do guarda roupa?
―Nada que possa interessar a você, ouviu?
Voltou para o quarto, e desejou fortemente, com o que ainda havia de forças em seu pensamento.
"Eu quero que aquela tesourinha vá parar dentro daquela mala"
Por que este pensamento bobo? Difícil dizer. Talvez porque estava ficando cada vez mais alienada, nada fazia sentido.
À noitinha colocou a sopa na mesa. Ele comia como um porco. Fazia ruídos nojentos puxando a sopa para dentro da boca. Ela perdeu a fome, e começou a pensar num porco. Ele estava começando a se parecer com um porco. Ela pensou, "Puxa, ele poderia virar de vez num porco"
Foi deitar-se, ligou a TV, e começou a dormir. Começou a sonhar. Mas seria mesmo sonho? Tão real...
Havia uma escada junto ao guarda roupa. Uma escada tão bonita... Parecia aquelas escadas de bibliotecas em mansões inglesas....Toda em mogno. Subiu e passou por cima da mala, apoiando nela. Havia uma porta, aliás, nem mesmo era uma porta, era pouco mais que uma passagem. Um túnel. Arrastou-se pelo túnel, e entrou no sótão. Aquele sótão era só seu. Ninguém mais entrava lá. Era seu lugar particular.
De manhã cedo a luz trespassou a cortina alaranjada desbotada do quarto, criando uma luz bonita no quarto. Ele já tinha saído.
Olhou para cima do guarda roupa, e viu que o túnel estava bem fechado. Graças a Deus...
Passou o dia envolvida na mesmice, cozinhando os pensamentos. De vez em quando olhava o túnel, mas sabia que só depois que ele dormisse poderia ir ao sótão.
A noite chegou, e com ela o marido.
―Cadê o diabo da tesourinha, Celina?
―Como é que eu vou saber? Você colocou na gavetinha, do seu lado...
E ele fungava, irado...
―Mas não está lá, e ao que eu saiba, a menos que você tenha tirado, tesoura não anda, ou anda? perguntava irônico...
Ela fugia para a sala, fingia ler uma revista.
Ele fazia barulhos no quarto, jogando coisas no chão.
―A partir de amanhã vou colocar chave em tudo o que é meu....ameaçava tolamente.
Noite de novo. A inveja que ela sentia do sono fácil do marido tinha acabado. Quanto mais ele dormisse melhor. Mais tempo podia ficar no sótão.
Os dias foram passando, as noite acompanhando, numa sucessão infernal de um nada contínuo.
O sótão agora estava mais alegre, tinha flores, um espelho...
E Celina se fitava ao espelho, sentada em um banquinho. Quisera ser Alice, e poder entrar naquele espelho. Mas não podia. Do sótão conseguia ouvir os roncos desesperados do marido. Não conseguia mais ver em sua mente o marido, só conseguia vê-lo como um porco, resfolegante.
Tinha medo que ele acordasse e notasse sua ausência.
Porisso descia e segurava a respiração, para que ele não ouvisse nenhum passo.
Um dia aconteceu o inevitável. Ele a viu sair da cama. Mas neste dia ele, precavido tinha tirado a escada do lugar.
Ela alegou que apenas ia ao banheiro.
Tornou a deitar-se, aborrecida. Olhou para cima do guarda roupa e lá estava o túnel. "Que chateação", pensou. Não conseguiu evitar um pensamento de como seria bom se ele sumisse de vez.
No dia seguinte ele não veio jantar. Não veio dormir.
E ela começou a não se importar. Ficava horas a fio no sótão, agora a qualquer hora do dia. Na saída, sempre se sentava um pouco sobre a mala. Sentia-se aliviada com o sumiço dele.
No quarto dia telefonaram da repartição. Queriam saber o que acontecera.
―Nada de mais, respondeu tranqüila. Ele precisou viajar.
Desligou o telefone com a sensação de ter falado a coisa certa.
Um mês depois a correspondência dele se acumulava em montes, não havia mais nada de mantimentos, e ela não precisava limpar a casa. Começou a comer no sótão, numa cozinha improvisada.
Mantinha o sótão sempre impecável, e com isto fugia do mau cheiro na casa.
Nada importava, ela não precisava mais responder a questões bobas sobre tesourinhas de unhas. Que diferença fazia se a casa cheirava mal?
No dia em que a polícia entrou ela estava sentada em cima do guarda roupa, na mala trancada.
Foram gentís e ela não se importou quando a pegaram com carinho pelo braço, conduzindo-a para fora do quarto.
Disseram que ela precisava de cuidados..."E quem não precisa?", pensou Celina.
Foi viver num outro lugar, mais claro, sem cortinas alaranjadas, bem silencioso, onde ela podia ir ao sótão com mais facilidade, já que no seu velho quarto tinha que subir em cima da mala, no guarda roupa.
Havia um homem, mas ele era diferente, educado, calmo.
Ele fazia perguntas, mas ela não precisava responder. Respondia apenas quando queria.
Ele estava muito interessado em saber onde estava o marido dela. Respondeu a mesma coisa de sempre.
Um dia ele deixou a polícia entrar em seu novo sótão, e fazer-lhe umas perguntas.
Mas antes, quis saber se ela estava de acordo.
―Claro, disse Celina, agora sou tão feliz...
O policial perguntou-lhe quem colecionava tesouras.
Ela riu.
―Tesouras?
―Sim, tesouras de todos os formatos, todas com data, dentro de uma mala. Mais de duzentas.
―Não sei, respondeu Celina, sentindo-se leve, leve. Nunca soube o que havia dentro da mala.
O policial lançou-lhe um olhar benevolente e perguntou ao homem agradável, dono do sótão:
―O senhor permite?
O homem bondoso, o que não a obrigava a responder nada, só o que ela queria, disse:
―Celina, você se importaria de esclarecer uma pequena coisa?
Ela sorriu...Era tão bom estar ali, longe do olhar pesado do marido, desobrigada de fazer aquela sopa todos os dias, ela faria qualquer coisa para continuar morando no novo sótão.
―O que?
O policial esfregou as mãos, suspirou, e finalmente perguntou, calmamente:
―Dona Celina, eu só tenho uma outra dúvida. A senhora consegue me explicar como é que em sua cama havia um porco enorme, morto?
Ela abriu o maior sorriso... Finalmente tinha acontecido.



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