O fogo sempre me encantou, parece que ainda me lembro àquelas coisinhas tipo velinhas que flutuavam acesas próximo ao meu berço.....é incrível mas ainda lembro daquilo....aquelas lusinhas....nunca soube para que serviam mas me encantavam...tanto que fui desenvolvendo táticas para pega-las....e acabei caindo algumas vezes do berço....logo minha paixão foi descoberta e as coisinhas acesas na água foram parar em uma prateleira mais distante.....foi o meu primeiro amor impossível....entre tantos...mas foi bom
O fogo em mim perdurou, um desafio apaixonante.....logo percebi os fósforos....encantei-me....tornara-se uma obsessão muito bem vigiada por todas as criaturas que transitavam pelo apartamento....eu já era então um garoto perigoso....ao menor descuido....eu me apossava de uma daquelas maravilhas.....cheguei mesmo a esconder algumas....já que ainda não conseguia concretizar minha relação com meus amores clandestinos.....fracassava em riscar os fósforos.....”fita lux”- FOSFOROS DE SEGURANÇA....talvez por isso tão difíceis de tirar o fogo deles....a prova de meninos bobinhos.....mas mesmo assim eu guardava as caixa....escondia....algumas vezes minha mãe achou meus depósitos clandestinos...e zelosa de que eu tentasse por fogo no mundo, ainda tão cedo ....mãe é assim conhece suas crias....sabia que eu iria logo querer buscar a grande iluminação...em grau máximo....papai nunca pensaria assim....temia que eu pusesse fogo nos jornais ...ou no máximo no apartamento.....e eu ainda não sabia riscar os benditos palitinhos....para meu consolo passaram a me engabelar com caixas vazias ....que assim mesmo viraram uma fixação....sempre brinquei com elas....não conte a ninguém....até hoje brinco.....mas só as pessoas que me conhecem bem conseguem identificar meus gestos frente a uma caixa de fósforos....como um jogo....um carrinho....um helicóptero.....duas pessoas identificaram o fato com clareza.....minha sobrinha Carolina...devia ter uns cinco anos na época.....”tio posso brincar com você?” – não tou brincando...” deixa ....e eu tome postura e não brinquei com ela...mas confeccionei um carrinho com rodinhas de rolha e pintados......A outra observadora foi minha filha.....foi direta e aos gritos me delatou...”olha o papai brincando com as caixas de fósforos´ - nem precisou pedir para brincar eu convidei.....tínhamos um tesouro inteiro.....dois pacotes inteiros.....e brincamos um tempão....criança repara as coisas! Ai reside o prazer e o perigo....mas pensando bem onde eles não residem...não tem Lá muita graça não
A DESCOBERTA
O fogo ocupou de vez a minha infantil imaginação.....já não me bastavam as caixas de fósforos...era preciso dominar os segredos que lhes dariam vida.....e foi um primo a quem coube o valente papel de Prometeu em minha vida....e teve o fígado devidamente comido por minha vó.....mas foi ele que com absoluta paciência foi desvendando os segredos das artes de riscar os fósforos.....é claro que no princípio quebrei vários, coitados, mas fui evoluindo....e logo estava na etapa seguinte....queimando os dedos....aprendi então a não chorar por dores pequenas.....não queria revelar meus segredos ....talvez assim ....pelo fogo sejam formadas as personalidades masculinas....pela precisão do segredo, frente a possibilidade do castigo.
Os fósforos “vivos” tornaram-se minha nova obsessão, guarda-los e escondê-los para melhor usufruto secreto tornou-se uma arte....passei a não roubar as caixas inteiras.....mas descontar apenas alguns palitos.....era magnífico aquele cheirinho do enxofre queimando....e a sensação de mantê-los acesos até o ultimo momento possível.....por vezes queimando os dedos....era de fato um grande objetivo de vida.....parece engraçado mas as fixações sempre tomam nossas vidas ocupando o pensamento, enevoando todo o resto apenas para nada....nada mesmo.
Tornei-me um indivíduo ainda mais perigoso, extremamente vigiado......agora, de fato eu tinha o poder de colocar fogo nas coisas....e não sei bem até hoje porque isso preocupava demais a todo mundo, talvez se não tivessem prestado tanta atenção em mim e meus feitos a coisa tivesse perdido aos poucos a graça....e acabado no esquecimento....sem ter provocado o direcionamento que deu a minha vida..
A adoração aos fósforos foi passando, comecei a me regozijar com pequenas intervenções de fogo controlado....um papelzinho aqui ...outro ali..., só o cheiro me delatava, eu procurava ter meus momentos de paz e criatividade na varanda do apartamento ou no beiral da janela......mas as vezes o vento teima em empurrar a fumaça para dentro.....atraindo com certeza os meus combativos oponentes.....que rapidamente punham fim a minha expressividade quase artística.
Mas meus incêndiozinhos foram ficando maiores e mais elaborados....descobri novas cores que o fogo podia tomar....dependendo daquilo que queimava...as cores os estalos....uma confusão de prazeres incríveis....com algumas marcas de queimado em vários cantos do apartamento....e um culpado sempre a disposição....EU....foi assim que passei a não mentir.....como, o único incendiário residente pode negar os resíduos de suas obras?
Com a experiência fui buscando novos horizontes no fogo....e os altares de minha vó ....cheinhos de velas....foram saindo de cima da velha arca e escalando as paredes....para maior segurança geral.....e os pilotos dos aquecedores......delicia...permitiam todos os tipos de queimas ....ultracontroladas....com a vantagem de poder ocultar as cinzas....a agua corrente levava as provas para as entranhas das paredes.....só ficava o cheiro de fumaça....e o prazer realizado.
Fui me tornando cada vez mais obcecado pelos milagres do fogo, fato que preocupava toda a família em especial minha mãe, eminente pedagoga.....prática e teórica decidiu que minha cura devia ser efetuada por métodos empíricos...o que veio a acontecer em um momento de descuido em que fui pilhado fazendo uso indevido do fogão.....máquina que já dominava com maestria.....apesar de não saber sequer ligar o rádio....mas qual rádio?....ali não tinha fogo.....era no fogão o espetáculo...e pego em flagrante tive de me submeter a desagradável experiência de colocar meus dedinhos sobre a chama.....grandes coisas...eu já estava cansado de saber que aquilo queimava.....mas como era para o bem do ego dela permiti a tortura....não sem gritos e choros.....pois aquilo doía....e muito....mas os arcabouços pedagógicos de minha mãezinha mantiveram-se de pé não deixando dúvidas as teorias que tinha estudado com tanto afinco e que utilizava em prol dos alunos da escola pública onde trabalhava....esta foi minha maior contribuição a pedagogia....a partir daí dediquei-me apenas a questionar este campo do conhecimento....dúvidas sempre foram meu forte...talvez pelo fato de serem quentes....mas a lição foi aprendida....não devia deixar que me pegassem em flagrante.
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A MUDANÇA
Lá pelos meus seis anos...ou seriam sete? Mudamos do apartamento na tijuca, em cima da farmácia do meu avõ.....paparicado por todos pelo fato de ser o primeiro neto macho.....coisa aliás que eu só fui ter certeza mesmo depois dos 13......mas é outra história. O fato é que mudamos para uma casa enorme no subúrbio do Meier ....a casa em sí era uma bagunça....havia sido uma casa de cômodos , ou seja um cortiço ...tinha até placa de “feche a porta do banheiro”....Feche mesmo.....e outros desmazelos soltos por todos os cantos. Era o lugar ideal para realização de meus rituais ígneos.....quanto mato...quanta madeira...e uma farta provisão de querosene, para os lampiões...uma vez que a luz nem sempre se fazia presente...Pensando bem o Leitor há de ficar em pânico com minhas amplas possibilidades....mas eu não costumava agir descuidadamente e era vigiado como um jovem AL CAPONE dos incêndios, o que fazia de minha vida pacata um inferno em eterna busca do fogo.
Outras brincadeiras infantis haviam: bolinhas de gude, pião.....bola eu brincava.....quase normalmente, mas sem brilho....gostava de pipas....mas eram os balões que realmente me dominavam a imaginação.....e junto com eles as festas juninas.....fogueiras...fogueiras enormes....fogos....na época apenas me eram permitidas as estrelinhas, tudo devidamente vigiado e burlado, foi cedo que cheguei as bombinhas.
Mas em tempos normais passei a me dedicar zelosamente a passatempos infantis do tipo construtivo: havia nas bancas de jornal uma série de montagens de papel: aviões, carros, e casas....lindas casas....que eu comprava com dinheiro que guardava de minha mesada, o que sobrava dos chocolates e mariolas...tornei-me emérito montador daquelas coisinhas...toda família orgulhosíssima de minhas habilidades, e modéstia á parte ficavam lindos....e eu realizado com as atenções e elogios do público do qual quase sempre conseguia arrancar algum trocado para novas obras....No lado escuro do menino o prazer verdadeiro eram os momentos de solidão no fundo do quintal, quando o trabalho se realizava em prazer....e minhas obras ardiam em chamas cuidadosamente preparadas.....com a prática fui aprendendo que apenas o papel não produzia o efeito....perfeito, passei a reforçar as estruturas com pedaços de pau e outras artes, aproximando assim minha criação do efeito real.....um vidrinho de álcool dentro de um aviãozinho de papel em chamas é uma emoção; uma bombinha é estado de graça!
O fato de minhas construções desaparecerem da casa começou a despertar a atenção das forças repressoras....e logo, vítima da espionagem meu jogo infantil foi descoberto mas através de um acordo político com as forças de oposição foi-me permitido continuar minhas brincadeiras....sem a presença de explosivos ou combustíveis.....coisas que tinham de ser usadas e obtidas em segredo....mas meus trabalhos foram ficando cada vez mais sensacionais.....passei eu mesmo a criar os modelos, com estruturas de madeira e efeitos mais realistas....e agariar platéias entre meus primos e colegas.....meu ego foi crescendo...e minha megalomania junto....isso foi de fato me tornando um garoto meio mau.
Passei a realizar espetáculos maiores e sempre tentando o maior realismo....fato que agregado a minhas habilidades com pólvoras (eu mesmo fazia) e bombinhas me tornavam um pequeno terrorista aos 8 anos.....quando minha carreira ficou maculada por uma ação vingativa e impensada contra um verdureiro que tinha barraca no final da feira que se realizava as sextas-feiras numa ladeira próxima, era um português antipático que vivia implicando com os meninos da minha rua.....nossa (minha) maldade não foi contra ele propriamente mas contra seu mais fiel empregado, um burro, que ficava ali quietinho amarrado na carroça.....quietinho coitado.....preparei uma carga especial em tubo de pomada e furtivamente encaixei na bunda do animal....não enfiei nele não....Juro!...se eu enfiasse o bicho podia não gostar....e lá ia o plano ....mas tudo deu certo....ou errado conforme o ponto de vista.....a vítima zurrou como um burro louco que era e arrancou com a carroça arrastada de lado ladeira abaixo.....desastre....umas seis barracas foram reduzidas a frangalhos......a feira toda desembestou (lindo trocadilho) em pânico generalizado.....eu e os guris rimos muito....mas logo ficou comigo o célebre apelido “cú de burro”, que vez por outra era motivo de perguntas que vinham a exigir explicação demorada.
Mas de fato eu me arrependi do sofrimento que causei ao animal, não podia assumir ali na frente de todomundo.....mas sofri...e resolvi dar um tempo em minha carreira explosiva.....quem sabe se tivesse perseverado não seria um mago dos efeitos especiais ou um famoso terrorista.....
Passei então a me dedicar a atividade de baloeiro.....que é o sujeito que provoca incêndios a distância....e nem pode aprecia-los direito...bem verdade que o balão é um tremendo espetáculo....e não deve de fato ser culpado pelos incêndios....mas apenas as inércia das autoridades exclui da legalidade uma coisa culturalmente tão forte....ora ! basta que o balão seja cativo, preso ao chão para ficar mais controlável...pura burrice brasileira....dessas coisas de olhar as coisas nossas como inferiores....primitivas e simplesmente proibir...como já foram um dia proibida a escola de samba e o candomblé.
OUTROS FOGOS
As meninas só foram me despertar atenção lá pelos dez anos, todas não Clara.....uma amante do fogo que conheci na escola pública onde ainda se estudava com qualidade.....Reparei nela um final de tarde em que num descuido dos inspetores coloquei fogo em uma pilha de cadeiras quebradas (crime contra o patrimônio público mas....já prescrito), quando as chamas dançavam aos estalos e o sol ia já escondendo sua luz de uma forma no mínimo engraçada....é claro que todos estávamos em volta da fogueira....o fogo encorpava com o vento do poente....Clara em especial, olhava com um particular encanto as as labaredas....de um modo quase confessional, logo reconheci alí outra amante do fogo....eu mesmo não sabia o que estava fazendo....depois, com o tempo descobri que as melhores cantadas são mesmo assim....impulsos instantâneos sem grandes ousadias mas cheios de atenção pela pretendida, foi com certeza que não tenho mais como lembrar uma conversa boba, mas que bastou para ficarmos amiguinhos...inocentes incendiários....passamos a exercer uma cumplicidade em vários acidentes com fogo ocorridos nas imediações....ela tinha muito medo de bombinhas...e a brasa que aquecia meu peito foi me afastando dos meninos .....passamos a agir em dupla...e foram a luz de pequenas incinerações que ela pegou minha mão e que dei, num ato de maior coragem o primeiro beijo verdadeiro, não foi coisa intima .....mas é o calor que conta, no beijo o que vale é a temperatura não a profundidade ou extensão....Não custou muito e fomos pegos .....em toda história tem de haver um dedoduro....pais chamados, preleção e vigilância estabelecida, no fim do ano ele mudou de escola e fiquei sem mais ver aquela magrinha pálida com um modo de ser caladinho e ao mesmo tempo levado que me mostrou o caminho de outras chamas mais ricas e interessantes, na comunhão que tinhamos pela prática dos esportes igneos.
Não voltou a mim este fogo novo que havia aprendido com Clara.....fui levando a vida domina do por fogos convencionais, fogueiras, balões, pólvoras até os 12 anos, quando fui iniciado em outro tipo de fogo que arde por dentro e deseja incendiar o mundo, conforme dizia sabiamente minha mãe.
O FOGO MAIOR
Talvez pelo simples desejo de aborrecer, incendiar a famíla, ou apenas por diversão, fui procurando novos focos possíveis....onde havia o fogo....lá estava eu, no mínimo observando....e era o Gremio Estudantil o lugar mais esquentado que podia existir na escola....lá estava eu....em meio a uma ditadura militar, ouvindo as conversas dos colegas mais velhos e jogando muito....mas muito totó....não haviam os videogames de hoje....ainda sem entender nada...fui preso a primeira vez .... e ardeu em mim, a paixão pela luta contra o regime opressor, e com o tempo descobri o ring onde se alinhavam os maiores incendiários
Aqueles inconformados....que procuravam estabelecer o grande incêndio da revolução....onde arderiam os alicerces da velha sociedade para que a nova pudesse ser recriada....algo assim como a demolição de um bairro inteiro para construção de um novo.....só que em escala megalômana....tudo isso a partir do fogo que faríamos arder no peito dos explorados...peito esse a que como um bando de cupidos devíamos passar a vida lançando flechas incendiárias ...e foi esse o esporte a que me dediquei....arqueiro....sem nunca descuidar....muito que fosse dos estudos.
OS FOGOS DOMINADOS
A revolução não veio....mas caiu pelo menos a ditadura....e eu me orgulho de ter participado.....como jovem-homem-cidadão destas lutas.....talvez esteja hoje um pouco cansado .....meu fogo caiu um pouco....mas continuo participando das lutas cujo fogo me encanta.....
O fogo físico....esse foi completamente dominado....sobre as águas....tornei-me marinheiro....ou melhor oficial de máquinas....o grande dominador dos fogos.....dos motores diesel gigantescos....das caldeiras....e ainda viajei um bocado, de quebra.
Foi no campo do coração que não consegui ainda pleno sucesso.....quando ele parece dominado....como a boa chama de uma caldeira, útil para gerar vapor que move as máquinas de que vivemos, nossos filhos, família, trabalho......aparecem outros focos....outros incêndios.....que as vezes passam somente destruído, outras criam as luzes que perduram eternamente, enquanto duram....ou sem se deixar ser dominados.....apesar das tentativas.....ainda não consegui dominar .....acho que poucos mesmo conseguem......muitas vezes apenas impedindo que venha o fogo....ou apagando os pequenos focos....mas eu não....sou do tipo que ama as chamas....que as deixa campear....e sente o prazer em sentir no peito as labaredas encobrindo a lua.....as vezes eu mesmo provoco....é assim que continuo um pequeno incendiário nem sempre bem sucedido....mas que ama demais os artifícios ígneos para encerrar o jogo....talvez com o tempo.......eu venha a me tornar um bombeiro....nunca é tarde....e eu tenho filhos, pode um dia ter de alguma chama tentar apagar, mas eu espero nunca ter de assumir essa tarefa contraria a minha natureza .....mas quem sabe?.....é assim a vida.