Nada toma o teu tempo de uma forma mais cruel que um plantão. São vários dias da tua vida perdidos pelo ralo, uma imersão nas misérias e fraquezas de todos os tipos de gente,
um mergulho na tua própria merda. Mesmo assim eu passava três noites por semana, vestido de branco, numa emergência, com o cu na mão, imaginando que bom seria se os ponteiros do relógio girassem na velocidade da hélice do ventilador para eu chegar em casa e fumar mais quatro baseados. Mas eles eram lerdos, transformavam aquelas paredes azuis numa zona morta, num universo paralelo, num bólido à velocidade da luz.Cada ano acrescentava um cadeado à caixa onde eu guardava meus sentimentos de solidariedade, compaixão e respeito. A vida adquiria um quê de luta armada, uma guerra onde a felicidade dependia unicamente da minha sobrevivência. Um sorriso por não estar fodido naquela maca, três vivas por não ter a perna despedaçada, uma cerveja por respirar sem estar ligado a um fole, trepar por não parecer uma múmia, correr por não estar morto sob o lençol branco. Uma letargia de opióide, sobreviver era o importante.
Minha casa era o cosmos antes do ¨big bang¨, meus bichos de estimação oito ou talvez doze baratas, meu jardim os fungos na panela de arroz. As férias na praia eu conseguia na locadora de filmes, a dieta era exatamente a que eu nunca recomendaria e o coração estava ocupado com a nicotina sem espaço para mais ninguém.
- Doutor o senhor não vai ao menos encostar mim?
- Acho que sou alérgico a este medicamento.
- De oito em oito horas ou três vezes ao dia?
- Vou processá- lo .
- Adrenalina, carrega para duzentos e cinqüenta “joules”.
- Minha mãe está morrendo e ninguém faz nada.
Eu estava morrendo e ninguém podia fazer nada.
Acordava com a boca seca, uma puta vontade de cagar e com a cabeça a ponto de explodir. Pegava a maleta de couro em cima da mesa da cozinha, dava uma última bola naquela ponta esquecida no cinzeiro, enchia um copo de vodka com leite e saía turbinado.
*
Quarta feira chuvosa, tudo indicava trabalho árduo mas a sala de espera jazia num silêncio pré- catastrófico, numa calmaria de tempestade.
Apontava um lápis usando lâmina de bisturi, testava a ponta na minha mão até quase furá- la e tinha a intuição de uma grande desgraça, que eu não fazia força para afastar e que me dava algum prazer.
A campainha soou estridente e funcionou como um raio trator, chamando- me de volta para o claustro. Uma enfermeira gorda e feia como a madrasta dos contos de fada arremessou na minha mesa uma folha verde onde se lia Lília...,vinte e quatro anos, particular.Tripla felicidade.
O quarto motivo de alegria eu desejava mas não apostava nenhuma ficha nele até Lília entrar no consultório. Seus olhos eram tão tristes, tão profundamente tristes e verdes, que senti renascer em mim o instinto hipocrático de praticar a cura. Não a dela mas a minha própria.
Seus lábios moveram- se de forma discreta, quase imperceptível, quando me cumprimentou. Não retribui a saudação. Eu devia estar com olheiras enormes e do canto da minha boca arrancava pedacinhos de pele morta com a língua, comia mal e cresciam em mim de modo selvagem a barriga e os cabelos, imediatamente pensei no tempo parado sem exercícios e se aquela mulher gostaria, por acaso, de juntar sua escultura a minha carcaça.
Cinco segundos de hiperespaço.
- A senhora pode sentar por favor.
Novamente o sorriso fleumático. Ela parecia flutuar ao sentar- se e eu não enxergava nenhum mecanicismo, nenhuma reação fisiológica de deambulação em seus movimentos, Lília parecia um fantasma.
- O senhor é religioso?
Os mais impertinentes começam falando, perguntam demais e te olham desconfiados, não nunca fui dado a religiões ou misticismos mas a experiência profissional criou em mim o cacoete de jamais tirar as esperanças alheias ou tentar convencer alguém de que o mundo é uma merda.
- De certa forma, sim.
- Não há muitas formas, é ou não é?
Caralho!
- Acredito em deus e pronto.
Respondi como um professor primário responde a sua aluna mais querida e antes de Lília esboçar qualquer reação segui a entrevista.
- Em que posso ajudá- la?
- A doença me transformou doutor, de madrugada é como se fosse dia pra mim, minhas mãos tremem todo o tempo e parece que meus ossos vão inchando, aumentando de volume enquanto minha carne murcha.
Terminou a frase e desatou a chorar depois controlou os soluços, tomou o ar ruidosamente e continuou:
- Na minha cabeça é como se uma nuvem carregada ficasse trovejando e não me deixasse pensar.
O mesmo papo que todos os dias um monte de velhas chatas me aplicava,mas agora era diferente, para Lília eu tinha toda a paciência do mundo, um dia olhando para suas pernas, horas contemplando cada dedo pequeno e bem feito dos seus pés, os olhos verdes, vermelhos de chorar, os cabelos negros e lisos cortados à altura do ombro, a pele pálida, anêmica e o jeito de quem está prestes a um sofrer um colapso nervoso, não desses histriônicos mas um que te inspira cuidados instintivos como se alguém que não merecesse estivesse sendo submetido a um castigo cruel.
Hormônios malditos sempre me escravizaram , maldita chapação endógena. A vontade que tive naquela hora foi de arremessar meu estetoscópio pela janela, gritar fodá- se à enfermeira gorda e sair dali, com Lília, direto para casa onde eu poderia cuidar de todos os seus problemas com atenção e zelo triplicados.
- Olha querida, existem coisas boas e coisas ruins na vida de todo mundo, é preciso que tu te apegues ao que tens de bom.
- Mas se eu digo não ter nada de bom é a pura verdade, só o senhor pode me ajudar, o senhor é minha última esperança, e se não acreditasse em deus poderia me ajudar mais facilmente.
Puta que o pariu, tudo que eu não precisava naquela manhã era de uma psicótica discutindo filosofia no meu consultório, mas dos males o menor, era uma gostosa, dos males o menor.
- Lília, às vezes tudo parece dar errado mas me diga do que tu precisas e eu prometo não te deixar na mão.
Fui sincero, juro que fui. Sou o mestre das promessas descumpridas, mas a guria a minha frente parecia a mulher maravilha.
- Eu quero uma receita para morrer rápido e que não me transforme num cadáver mutilado.
*
Em Platão, Sêneca, Cleópatra, Jesus e Nero foi no que eu pensei naqueles dois segundos intermináveis de um silêncio de hecatombe nuclear que seguiu as palavras de Lília. Várias pessoas tinham me falado coisas semelhantes mas nunca quando paravam de chorar e pareciam recuperar a calma e o bom controle. Lília, Lília, tão bonita quanto maluca.
Acabou de falar , seus olhos agora eram simplesmente verdes, sua face a de um anjo ou santa.
- Lília, um médico é alguém que supostamente zela pela vida não posso te ensinar a morrer. Fala o que te incomoda, o que te faz sofrer assim.
- Já estou morta, meu sofrimento sou eu mesma. Podes me ajudar?
A enfermeira baleia entrou no consultório de supetão e gritou: “Parada cardíaca”, e a realidade desabou sobre mim esmagando minha compaixão lembro- me de antes de sair correndo dizer à Lília, moro no 208 da rua das palmeiras vá às nove e eu prometo ajudar- te no que quiseres.
A parada cardíaca era um homem de quarenta e cinco anos, desmaiou no emprego. Quando o vi sua orelha estava azul e os lábios roxos como se acabasse de ter chupado um picolé de uva, ele morreu e estendido naquela maca parecia um boneco, um espantalho.
*
Como um vampiro que espera o dia passar para sair da tumba eu contei cada segundo naquele hospital, cada segundo longe de casa e de Lília. A noite demorou mas chegou junto com a liberdade e às seis e meia eu já respirava aliviado.
No carro rodei um disco de Chat Baker e acendi um cigarro depois de deixá-lo mofando na boca por alguns minutos. Enquanto o sumo da nicotina agia em mim eu pensava se Lília apareceria , se ainda estava viva, se a comeria, se teria ainda os mesmos olhos tristes.
Dirigia sem dar atenção aos outros carros, ignorava os buzinaços e os gritos de filho da puta, corria para casa.O carro seguia o caminho sozinho, numa espécie de piloto automático, as pessoas na rua, as lojas, os mercados, os mendigos, o asfalto de um preto desbotado, tudo parecia um filme visto do para brisa, enquadrado como no cinema, maldita chapação endógena, terceiro olho, olho do cu. Estacionei com a suavidade de um pouso de emergência e a calota dianteira direita ultrapassou o carro parando alguns metros adiante, puta que o pariu, alguma coisa deveria durar, fazer aniversario nas minhas mãos, mas quebro tudo, uma sina destruidora, uma maldição, quebro mais rápido as coisas bonitas. Talvez Lília conseguisse ler estas coisas na minha testa, eu era claro, transparente para ela, seus olhos tristes eram meus olhos tristes. “Mantenha a calma, controle as emoções”, escutei na minha cabeça numa voz de narrador de filmes bíblicos, “ou irás brochar”.
Chovia quando desci do carro, tinha medo de Lília não aparecer, fedia a álcool e meu sapato estava manchado de sangue, pensava na felicidade que os anos deveriam ter me proporcionado, na segurança e prosperidade da vida adulta. E se a guria já estivesse morta?, seus olhos agora inexpressivos e foscos, a ponta dos dedos azul, a boca entreaberta e a etiqueta no pé, o caos da mente é solúvel em álcool, a vodka espantaria estes pensamentos ruins.
Morava num prédio de quatro andares, sem elevador, nem vizinhos humanos, contava dois lances de escada, trinta degraus, antes de chegar à porta do meu apartamento e antes de abri – la sempre tocava a campainha para não surpreender nada lá dentro. Catei copos, gelo, vodka. Enchi o de Lília, larguei o meu na mesa da cozinha e bebi na garrafa até adormecer a língua e queimar o estômago, bebia e as coisas perdiam o ar de sonho eram todas velhas novamente, minhas paredes, os discos de sempre o tapete com cheiro e gosto de cachorro morto. A terra continuou seu giro inexorável de pião e quando entrava- mos em três horas na noite, o interfone tocou como o alarme de um submarino. Não escutei nada no maldito aparelho e deixei quem quer que fosse entrar.
Parada na entrada da minha casa Lília parecia um anjo, com calças jeans e uma blusa branca, os cabelos presos num rabo de cavalo e os mesmos olhos tristes, não nos falamos, consegui cada parte dela por duas horas, ela colocou a roupa enquanto eu fingia dormir e foi embora, como um fantasma, já estava morta quando foi.
Nunca ajudo ninguém.