Depois de juntar pastas de documentos espalhados na mesa e enfiá-las na gaveta, espreguiçou-se na cadeira giratória, rodopiando-a dum lado pra outro. Levantou-se, em seguida, e foi direto ao lavabo. Esvaziou a bexiga, com alguma dificuldade, o que vinha fazendo com maior freqüência nas micções diárias. Estava preocupado. Mostrava-se ranzinza e de poucas palavras com os colegas de trabalho. Deu uma ajeitada na aparência. Olhando-se no espelho, disse pra si que estava na hora de procurar um urologista. Depois dos quarenta, era aconselhável uma “checada” na próstata. Já ouviu, ou já leu, a respeito disso.
O caso que defendia, como advogado, podia esperar. Os processos na Justiça andam mesmo a passos de tartaruga, pra que correr? Quem morreu, morreu. O réu estava vivo, que esperasse. Vou me cuidar. Acho que também mereço. Decidiu-se.
Foi o último a deixar o escritório. Os dois colegas se foram mais cedo. A secretária e o boy cumpriram os seus horários. Também se mandaram.
No elevador, só o ascensorista, um paraibano cortês e sempre alegre. Do vigésimo andar à garagem, no sub-solo, apenas um “boa noite” e um “até amanhã” frios quebraram o silêncio na clausura da cabine. O seu mal-humor era visível. Encaminhando-se para o seu BMW, se perguntou o que era que Severino tinha a ver com o seu problema. O cara era um batalhador. Subindo e descendo, das 8 às 18 horas, no comando daquele elevador, devia ser de torrar o saco. Morava no subúrbio. Dali ia pra Central do Brasil, apertado num ônibus, pegar um trem também lotado. A mulher e os filhos já dormiam, por certo, quando chegasse em casa. Contudo, era feliz. E sem problema de micção. Ia se desculpar.
O trânsito ainda era intenso. Ônibus, microônibus, motos e automóveis não se entendiam no rush “indigesto”. A chuva caía leve, mas intermitente. Consultou o relógio no painel do automóvel. Já passava das 19 horas. Uns poucos automóveis restavam nos estacionamentos. O arejamento do sub-solo sempre foi péssimo. A chuva não amenizava o calor. O Condomínio prometia dar um jeito, mas ficava por isso mesmo. Também, pombas, ninguém vota pela elevação da taxa mensal! Resmungou. Ligou o ar condicionado do carro, e o rádio. Night and Day, de Cole Porter, trouxe-lhe boas recordações. Não foi um “rei da noite”, mas aproveitou, e muito, as noitadas na zona sul. Casou, como comentou depois com o seu médico, porque ficou exausto da vida de solteiro, lidando com mulheres fáceis e vazias de qualquer sentimento. Desmotivou-se. Era hora de parar.
Outros profissionais ainda trabalhavam em alguns andares, dentistas, principalmente. Ouviu outras músicas, dando tempo ao tempo, para ir embora. Avisou a mulher pelo celular. Os temporais de setembro mexiam com a cidade. O trânsito virava um caos. Os raios, lá fora, vez por outra, clareavam a saída da garagem. Sempre teve pavor a relâmpagos e trovões, desde criança. Quando adolescente, viu um companheiro de pelada de futebol ser atingido por uma faísca elétrica. Era o mais alto do grupo. Por isso, foi fulminado, ouviu alguém explicar.
Um câncer de próstata o assustava, agora, mais do que tudo. Da tempestade, bastava não se expor. E da evolução da doença; da metástase, se já existisse? Um raio liquidaria sem dor, sem sofrimento. O maldito câncer o mataria aos poucos. Impiedosamente, roubar-lhe-ia a vida. No vidro pára-brisa via o cenário lúgubre dos seus últimos dias. Uma sonda enfiada nas narinas,ou uma traqueotomia, um suporte, ao lado da sua cama, com um tubo de soro pendurado e uma agulha espetada na veia, para o manterem vivo. Era o seu estado terminal, como viu o seu professor de Direito Penal, no Hospital do Câncer, que visitou quando universitário.
Duas pessoas desceram do elevador. Observou, mesmo distante como estava. Como vestiam branco, seriam profissionais de saúde. Dentistas, ou médicos, com certeza. Quem sabe, um deles fosse urologista e não se negasse a uma pergunta. Não seria uma consulta, ora bolas! Queria saber apenas se urinar, em intervalos curtos, tinha alguma relação com problema de próstata.
O tempo se firmou. Todos se foram. Até os dois odontólogos, que reconheceu, subiram, em seus carros, a rampa de acesso à rua.
O toque retal esclareceria alguma dúvida, já que não se submeteria a uma ecografia transretal, procedimento por demais incômodo; martirizante mesmo, considerou, uma vez que a introdução do instrumento prescinde da sedação do examinado. É na marra, como clister em cavalo. Não obstante, foi esclarecido, era minucioso, não deixando qualquer dúvida quanto à existência, ou não, de nódulo prostático. Era um exame que meu pai, com certeza, preferiria morrer a fazê-lo. Homem que é homem não se submete a uma humilhação dessa. Seriam as suas palavras, parece até que estou vendo. Afirmou José Carlos.
Um tio, irmão da sua mãe, teve câncer de próstata. Não morreu da doença. Mas ficou impotente. Não conheceu outros casos. Respondeu a interrogação do médico, que quis saber de antecedentes familiares. O seu “psa” (antígeno prostático específico) ficou bem acima do nível aceitável. A próstata estava aumentada, o que é natural, depois dos 50 anos. Uma biópsia foi recomendada. Ele concordou, contrariado.
A esposa, nem o ascensorista Severino, nada tinham a ver com o seu “drama”. Em casa, mudou de comportamento. Estava incomunicável. Dormindo mais tarde do que de costume, negava-se a lhe dar satisfação. Não tinha decidido revelar a angústia que estava vivendo. Sentia-se acovardado. E se ficasse impotente, caso se operasse? Perguntava-se sempre. Já dormia à base de tranqüilizantes. Ivana era nova e bonita. Não poderia conviver com um homem castrado, sem poder corresponder às suas necessidades fisiológicas. Aquilo lhe martelava a cabeça.
Chegou mais cedo ao escritório, depois de dois dias de ausência. A secretária já havia separado os documentos que pediu, pelo celular, no trajeto para o trabalho. Desceu em seguida, já encontrando Severino no comando do elevador. Agora, com um sorriso, cumprimentou o bom paraibano, e pediu desculpas pela grosseria cometida naquela noite.
- Coisas da vida! Coisas da vida, amigo!...
Partiu para o quartel da PM, onde, em prisão especial, estava o seu constituinte. Tinha curso superior. Era engenheiro de tráfego. Não tinha mais mulher para dar satisfações, como ele. Sabia que o seu cliente era culpado. Era assassino. Frio até. Mas estava ali para defendê-lo; para dizer que não foi intencional o disparo do “38” que matou a ex-esposa, pois já estavam separados, e outras mentiras mais, que a Justiça, que é cega (e burra, acrescentava), aceita. Tudo estava na peça da defesa, que ia dar conhecimento ao acusado.
José Carlos, bem casado, ao contrário do seu cliente, tinha que esclarecer o seu problema. Ivana merecia satisfação daquela sua conduta. Ela o ajudaria, sem dúvida. Estava certo disso. Era nova, mas amadurecida e de personalidade marcante. Se ficasse broxa, já havia meios a que recorrer. Medicamentos modernos, como o Viagra e outros injetáveis, comprovados, já resolviam a “questão”. Ele conhecia casos de homens, idosos, que viviam em perfeita harmonia com as suas esposas. Pouco se alterou em suas vidas. Deduzia. Ele não seria uma exceção. Todavia, como ainda não tinham filho, mesmo conhecendo as virtudes da mulher, retinha-se na dúvida da aceitação de Ivana, futuramente. Com a fisionomia intumescida, avermelhada, ou descorada; sem os cabelos, caídos pelo efeito da quimioterapia, usando, assim, uma touca para cobrir a calva ridícula, sem a certeza de que o tratamento o recuperasse, restituindo-lhe uma vida normal, ou quase normal, temia pela desilusão da companheira.
- Esperar o que de um homem inútil, fisicamente, doutor? Conviver comigo até quando? Pra quê? Por quê? Por piedade? Não! Nunca! Alimentava a incerteza dos seus dias futuros.
Embora muito comovente, o drama de José Carlos não sensibilizou o seu médico, que marcou o exame de toque retal, depois de convencê-lo a desapear da arrogância de machão, que herdou do inesquecível pai.
A biópsia revelou um tumor uniforme, de características benignas.
- Ainda bem! Revelou o urologista.
Ivana tranqüilizou o marido, a pedido do médico.