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Contos-->O mendigo que declamava Ovídio -- 25/05/2000 - 06:18 (Marcia Lee-Smith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Ele era uma pessoa conhecida por todos da cidade. Perambulava desde que amanhecia, até que a noite cobria tudo com seu manto escuro. Aí ele se recolhia a uma quartinho nos fundos de uma casa, e só saía de lá quando o dia clareava.
Numa padaria aqui, outra acolá, tomava um café com leite, pão com manteiga. Sempre alguém lhe dava um almoço, fosse num restaurante ou numa casa. Sempre davam-lhe roupas, agasalhos.
E ele agradecia, com uma expressão digna e altiva do alto de seus um metro e oitenta de altura, agora encurvados.
Gregório era uma figura que conheci, quando toda a cidade já sabia de longa data quem ele era.
Vestido sempre com terno e gravata, sapatos que ele tentava manter pelo menos mais limpos que os da maioria dos homens que nem mendigos eram.
Conheci-o sentado em um banco de praça, lendo, como sempre.
Alguém me mostrou: Olha, aquele é o Gregório.
E eu cheguei perto, curiosa, tentando saber o que ele lia.
Mas não foi desta vez. Ele me olhou também, e eu envergonhada de ser pega olhando-o, disfarcei e saí.
Uma vez, ele estava cercado de uma dezena de estudantes, que o ouviam e faziam anotações. Intrigada, esperei que os estudantes fossem embora, e segui duas moças, às quais perguntei o que se passava. Elas disseram:
― Mas você ainda não conhece o Gregório?
E eu, envergonhada, ― Não, mas sei que há algo de especial com ele.
Elas riram, e saíram correndo, me deixando sem resposta.
Os anos foram passando, e minha curiosidade a seu respeito aumentava.
Tinha uma tal dignidade em sua postura, uma altivez em seu olhar triste, que me comoviam.
Uns diziam que era louco. Outros, que aquilo fora opção de vida, as histórias eram desencontradas.
Uma das coisas que eu sabia sobre ele, era que só aceitava morar no quartinho oferecido pela família que o acolhera. Nenhum outro lugar lhe agradara, embora não houvessem sobrado oferecimentos.
Os médicos da cidade muitas vezes o pegavam na rua, colocavam-no no carro e levavam-no para um exame completo de saúde.
E em qualquer farmácia que eu o visse, ele "comprava" o que precisasse, e nunca pagava.
Claro que era uma pessoa querida na cidade, mas, por que?
Um dia, quase à hora do almoço, eu fui até o portão, e vi que Gregório vinha pela minha calçada. Num ímpeto, eu me coloquei em seu caminho, e perguntei:
― Me daria o prazer de almoçar comigo?
E ele abriu um sorriso triste, respondendo: ― Será um grande prazer.
Disse-lhe onde morava, e que o esperava, à hora que lhe fosse conveniente.
Chegou exatamente ao meio dia, e mostrou-se agradável e gentil durante todo o almoço.
Contei-lhe que morava sozinha, e que era um grande prazer para mim ter alguém para compartilhar um almoço.
Findo o almoço, sentamo-nos num pequeno jardim de inverno que era a menina dos meus olhos, e ele começou a declamar um poema em grego, que de fato eu não pude entender.
Em seguida, sem que eu perguntasse, ele estabeleceu a conversa.
― A senhora com certeza quer saber da minha vida, não?
Fiquei roxa de vergonha. Claro que eu estava curiosa, mas jamais iria perguntar-lhe nada.
Mas ele retornou, ao ver-me tão embaraçada.
― Todo mundo quer saber, e não é segredo para ninguém.
E começou a me contar sua vida. Filho de pais abastados, filho único, fora mandado estudar na França. Ao voltar, químico e farmacêutico formado, com altas especialidades, teve o desgosto de perder os pais num acidente.
A dor quase o baqueou, mas a certeza de que os pais ficariam felizes em saber que o filho voltara um homem culto e disposto ao trabalho motivou-o a fazer do sonho de sua vida uma realidade.
Construiu um grande laboratório, ocupando uma área enorme no térreo do edifício que teria nos dois andares de cima a sua casa.
Vendeu a velha mansão dos pais, para que não lhe sobrasse a tristeza de ver as paredes que contavam desde sua infância.
Mudou-se para o novo endereço, e alguns meses depois conheceu a moça mais encantadora que jamais lhe passara na mente pudesse existir.
Casou-se com ela, e tiveram um casal de filhos tão belos quanto a mãe, e tão inteligentes quanto ele.
O laboratório ia de vento em popa, vendia seus produtos como água, já que o carinho com que os produzia, e a qualidade de tudo o que fazia atraía clientes de muitos outros estados.
Ele se dizia feliz. Ele era feliz.
Levou a esposa e os filhos a conhecer o mundo, orgulhava-se de sua família como qualquer outro homem nunca houvera.
Mas um dia, e neste ponto da narrativa seus olhos se encheram de lágrimas....
Um dia, já era tarde, os funcionários já haviam saído, e ele lembrou-se de que prometera entregar um discurso encomendado pelo prefeito. Era o homem mais culto da cidade, e era comum que lhe pedissem coisas deste gabarito. O prefeito iria inaugurar a estação de tratamento de esgotos da cidade, e lhe pedira um discurso. Havia trabalhado uma semana nisto, e agora, bem à véspera do evento tinha se esquecido ! Mas ainda estava em tempo.
Disse à esposa que não demoraria, em uma hora estaria de volta.
Beijou-a carinhosamente, e a cada filho, sem saber bem porque.
Ao passar pelo laboratório ligou a chave de um equipamento, que deveria permanecer ligado durante a noite, e que, aparentemente tinha sido esquecido pela funcionária.
Sim, ela errara. O aparelho estava apresentando super aquecimento, o que ela só constatara poucos momentos antes de fecharem, e achou por bem manter desligado. Seu erro foi o de não avisar o Dr. Gregório.
Uma hora depois ele voltou, e se deparou com o espetáculo mais trágico que um homem pode ver.
O fogo destruindo sua vida, os corpos de sua esposa e filhos completamente queimados, os bombeiros incapazes de apagar as chamas que queimavam tonéis de produtos químicos.
Ele abraçou-se aos corpos semi carbonizados e enlouqueceu.
O prefeito, seu amigo, tomou todas as providências para seu internamento numa clínica da cidade, cuidou dos enterros, tentou até pessoalmente ver se conseguia salvar algo do fogo, mas em vão.
O trabalho de uma vida de Gregório fora-se em pouco mais de uma hora.
Os anos se passaram, e o diretor da clínica declarou que o paciente estava bem, poderia ter alta.
Mas alta, para que?
Ele retornou ao local. Era agora apenas um terreno, e da construção os escombros tinham sido cuidadosamente removidos.
Usou o dinheiro obtido na venda do terreno para pagar fornecedores, funcionários, e pediu apenas uma coisa aos novos donos, ao padre e ao prefeito, que estava em seu segundo mandato.
Ninguém soube qual fora o pedido.
Os novos proprietários construíram outra casa no local, e deram-lhe um quarto no terreno, com um banheiro.
E ele dizia que jamais sairia de lá.
Neste ponto da narrativa, eu perguntei, ― Por que?
Ele olhou-me bem dentro dos meus olhos, e respondeu, que jamais tinha contado isso a ninguém, mas se eu estivesse disposta a compartilhar com ele este segredo, eu o teria.
Tremi nas bases. Guardar segredo sempre é algo pesado. Difícil. Não que a língua coce, mas que é doloroso, na maioria das vezes.
Mas consenti, e foi realmente doído.
Ele conseguira trasladar os corpos de sua mulher e filhos para o solo debaixo de seu quartinho, de tal modo a que sempre estivessem juntos.
Agora éramos ele, o prefeito já havia morrido , o padre também, o casal dono da propriedade, mais dois coveiros que eu nem sabia se ainda viviam , e eu, a saber do drama.
Chorei muito.
Perguntei se poderia fazer algo por ele.
Respondeu-me que poderia convidá-lo para almoçar quando quisesse, e ouvir um poema.
Ficamos amigos, ofereci-lhe muitos almoços, ouvi muitos poemas em grego, vivi na cidade muitos anos, mas nunca traí sua confiança.
Um dia ele desapareceu. Não acharam seu corpo em parte alguma. Seu quarto era impecável em limpeza. Seus livros e cadernos estavam organizados. Os livros deveriam ter sido resgatados do incêndio, todos mostravam marcas de fogo e de que tinham sido molhados e depois secos.
Lembro-me de que um dia eu estava sentada à soleira da minha porta, tomando um pouco do sol frio de maio, quando a proprietária da casa parou o carro na frente de casa, e me deu um pacote.
― Acho que ele deixou isto para você.
Apertei o pacote contra o peito, como uma relíquia. Não o abri na hora.
Mais tarde, sentada bebendo um chá, eu coloquei o pacote em minha frente e criei coragem.
Eram sua poesias, todas em grego. Dentro do pacote havia um cartão preso ao primeiro caderno, dizia que aquilo seria para mim.
Aprendi grego, penosamente, alguns anos depois. Eram poemas de amor, sobre a vida e a morte, sobre as coisas perenes e as passageiras.
Aprendi mais que grego por causa dele. Aprendi a escrever e a amar poesias, aprendi a distinguir entre o que é e o que não é importante na vida, e principalmente aprendi o verdadeiro sentido de dignidade.
Sinto saudades dele. Não sei por que razão ele confiou em mim, e sei que não deveria trair esta confiança relatando isto aqui, mas que seja entendido como uma homenagem que lhe faço. Não sei onde morreu, nem como. Nem sei se de fato morreu. Homens como ele não morrem jamais.






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