Um inverossímil senhor Hyde, desempenhado debilmente por um ator inexpressivo, perse-guia a frívola e deslumbrante mocinha que, não obstante ser o contraponto da trama, por desencade-ar em doutor Jekyll os desejos mais recônditos, não possuía nas cenas uma ação maior que uns pou-cos gritos histéricos e alguns muxoxos. Num último e vigoroso espasmo de sobrevivência, o doutor Jekyll irrompe dos abissais da psique humana e procura, monótona e apaticamente, salvar, das gar-ras do seu outro “eu”, a si próprio e a jovem indefesa por quem se afeiçoara.
Conquanto considerasse uma obra imortal da Literatura Mundial, esta adaptação de “O Mé-dico e o Monstro”, a que assistia Alfredo era grotesca e desinteressante para Solange, professora universitária e esposa leal e apaixonada. A narrativa alternava seqüências arrastadas e cansativas com momentos tumultuosos de excessiva celeridade e confusão. Os primeiros arrancavam da espo-sa de Alfredo bocejos recorrentes que a impeliam a lançar, ao entretido marido, um olhar lânguido e pedinchão. Os segundos, longe de despertar algum interesse em Solange, só alimentavam suas espe-ranças de que a película terminasse. Esperança que logo se esvaía, assim que o ciclo entediante re-começava.
Alheio à péssima qualidade desta versão de “O Médico e o Monstro”, Alfredo demonstrava um interesse incomum e incompreensível por este filme que, além de classificar-se entre os de quarta ou quinta categoria, já houvera assistido duas ou três vezes em menos de um mês. E, tendo sempre a mão o controle remoto do aparelho, percorria os outros canais a cada reclame que entre-meava a tão desoladora versão.
Agora, ele pula o muro e alcança a mocinha próximo àquela murada. - Dizia ele para Solange sem desviar a atenção da tela da televisão.
Alfredo, vamos dormir, meu amor! Já são dez para as duas da manhã. - Instou Solange bocejando.
Já está quase acabando. Vá indo você que eu vou em seguida!
Você vai mesmo?
Vou.
Não foi. Alfredo permaneceu ainda, por pelo menos uma hora mais, diante daquele aparelho de tevê. Entretanto, agora, que encontrava-se só, os pensamentos que secretamente povoavam-lhe o espírito, obrigando-o a dissimular perante à esposa, desta feita, vieram-lhe de chofre e de maneira tão intensa que nem mesmo os acutíssimos gritos da protagonista da trama obtiveram o obséquio da sua atenção. Seus pensamentos entrelaçavam-se a sentimentos difusos e imprecisos, forjando um cordonete de dúvidas e insatisfações que tanto lhe asfixiava as emoções quanto lhe tolhia o raciocí-nio. Perdeu-se em divagações extremadas e, ao retornar do intempestivo mar de antagonismos, ad-vertiu os chuviscos na tela da televisão...
Solange, em contrapartida, ao chegar ao quarto, imediatamente abraçou-se ao travesseiro e, em decúbito dorsal sobre a cama, encetou um pranto solitário que lhe acompanharia até que a exaustão e a mágoa se rendessem ao sono. Sabia que Alfredo não viria: sua prática fugaz repetira-se metodicamente nos últimos três meses. E, assim, a suprema mágoa e a infinita melancolia, que so-mente a uma mulher preterida é dado conhecer, instalaram-se em seu quarto conjugal, em seu leito de núpcias, dentro do seu peito.
CAPÍTULO II – DA XÍCARA DE CAFÉ
No dia seguinte, apesar de toda pressão que à índole feminina impõe o epidérmico interesse masculino, Solange procurou parecer o mais natural possível aos olhos do marido. Atentava para um alvitre de sua mãe o qual prognosticava que a admoestação ou a repreensão nestes casos, não raro, mais afetam a relação e obstruem o entendimento que qualquer benefício que eventualmente pudessem auferir. Todavia, e não obstante todas as forças que Solange reunira para prosseguir neste desígnio, a falta de alento e o sentimento de desprezo, que as atitudes de Alfredo ensejavam, mina-vam pouco a pouco e inexoravelmente seu ânimo, seu amor e sua paz. A última gota era inevitável e verteria da xícara de Alfredo, quando ele, inadvertidamente, deixou cair o café no chão da cozinha.
Alfredo! Será que você é incapaz de beber alguma coisa sem derramá-la no chão? – Pro-testou Solange, colocando ambas as mãos sobre o cabo da vassoura.
Não se trata disso, meu bem. É que eu estava distraído e aí... – Tentava Alfredo contem-porizar quando foi bruscamente atalhado por Solange.
Estava distraído? Alfredo, você já nasceu distraído. Talvez, tenha sido por isso que você incorreu no erro de se casar comigo. – redargüiu Solange, a esta altura, encolerizada e dando vazão a sentimentos tão inóspitos quanto represados.
Mas, meu amor, eu me casei porque te amo...
Ah! Você me ama? Será que você me ama tanto quanto às suas amantes?
Mas de que diabos você está falando?
Ora, Alfredo, prá cima de mim? Então, com quem é que você está transando este tempo todo? Sim, porque a mim você não procura faz muito tempo. Aliás, você está sempre alegando al-gum pretexto para me evitar: ora é um trabalho urgente que não pode esperar até o dia seguinte, ora é um mal-estar súbito e tão duvidoso que, ao primeiro momento em que se encontra só, você mira-culosamente se restabelece. Ao menos tenha mais imaginação, Alfredo!
Mas, meu amor, não é nada disto. Você não está entendendo...
Ah! Eu não estou entendendo? Ainda mais furiosa com a aparente calma de Alfredo, So-lange largou a vassoura no chão e prosseguiu, descontrolada. Então espera! Deixe-me adivinhar! Agora, você é padre? Está usando batina escondido? Não, padre não. Você levaria toda a paróquia à loucura e até mesmo o Papa não agüentaria o seu cinismo...Você é viado? Vamos, Alfredo! Você agora é gay?
Alfredo, por mais que se esforçasse, não conseguia atinar o quê houvera com sua esposa. Estava atônito. Como uma simples mancha de café pode gerar tanto desentendimento? Que cami-nhos mentais percorrera Solange para inferir semelhante ilação? É bem verdade que não a procura-va há algum tempo, mas daí a imputar-lhe uma amante vai uma diferença considerável. Aliás, trata-va-se até mesmo de uma injúria, dado o comedimento e a morigerança com que sempre pautou sua vida familiar. Mas viado? Ser chamado pela própria esposa de viado era inadmissível. Sendo ela a própria repositária de todo o seu amor, seus sonhos e auto-estima, tal ofensa tratava-se de um pode-roso golpe desferido contra os seus sentimentos, suas realizações e seu orgulho. Todo o seu instinto masculino protestou e Alfredo retirou-se colericamente, batendo a porta da sala.
Solange, logo após a saída de Alfredo, deteve-se ainda algum tempo defendendo suas ra-zões. Afinal de contas, fora ele que, através de sentimentos machistas, engendrara toda essa situa-ção. Por que um homem é incapaz de manter a sensibilidade e a candura dos primeiros anos? Que ser malévolo habita no homem para fazer com que ele, após solidificada a conquista, despreze a que elegeu e necessite furiosamente de uma outra? Por que cargas d’água não poderia ser ele igual a ela para quem Alfredo era o único e suficiente?
Todavia, logo em seguida, a lembrança de seus pais, do seu casamento e, sobretudo, um sentimento misto de fracasso e depressão que inesperadamente lhe acometeu fizeram com que So-lange larga-se o corpo sobre uma cadeira, novamente aos prantos.
CAPÍTULO III – DAS CONFISSÕES
O que é que você está fazendo aqui, Alfredo? Numa tarde de sábado? Separou-se da So-lange?
Não, o que é isso? Tivemos um pequeno desentendimento sim, mas está tudo bem.
Alfredo necessitava desatar o nó que se formara em sua garganta. Havia dores e ódios inso-pitáveis num único peito, volumosos em demasia para uma única alma. Seus tentáculos açambarca-vam toda uma existência e necessitavam, para o bem prosseguir da experiência e para o arrefeci-mento do coração, verter em escapes disponíveis e acessíveis.
Entretanto, era com extrema dificuldade que o fazia. Que vertia o fel que lhe transbordava o íntimo. Temia tornar público a intimidade de seu lar, tamanho era cumplicidade que sempre manti-vera com Solange, e a idéia de que um juízo incorreto de sua esposa ou dele mesmo brotasse de seu desabafo, fazia-lhe escassear as palavras.
Permaneceu, assim, monossilábico até que alguns copos de cerveja lhe vencessem as resis-tências e um pensamento o encorajasse a atitude: sua intimidade resumia-se à Solange que era, a um só tempo, a vítima e o algoz de suas vicissitudes. Assim, inicialmente através de circunlóquios, mas agora às claras, através de precisas denotações, o interlocutor de Alfredo foi aos poucos tomando ciência de todas as mazelas domésticas que uma simples xícara de café é capaz de engendrar.
Dizem que o sexo com a mulher amada é o mais sublime dos prazeres, entretanto, fazer amor com Solange parece-me insosso, uma atitude mecânica e obrigatória, uma burocracia conju-gal. – Falava mais para si que para outrem, enquanto acendia um cigarro emprestado, apesar de ter parado de fumar há três anos.
Mas você se sente atraído por outras mulheres?
Sim, é claro!
Neste caso, o problema não é você, é a Solange.
O interlocutor era Juvenal Aleixo, um antigo amigo de bairro com quem, além da primazia no futebol e do melhor desempenho escolar, disputara a doce e bela Solange nos idos bailes de dis-cotecas. Os afazeres da idade madura e a opção de escolha de Solange encarregaram-se de os sepa-rar. Entretanto, a contemporaneidade, mesmo que contendora, e a convivência no mesmo bairro tratava de os reunir, ainda que esporádica e superficialmente.
Eu cheguei mesmo a duvidar de minha própria masculinidade, Juvenal.
Mas o que é isso, rapaz? Você não está indo longe demais, não, Alfredo?
Juve, Solange hoje é uma balzaquiana que manteve a beleza e a graça juvenil, acrescen-tando ainda a elas uma compleição firme e magnífica. Não ignoro que seus atributos físicos incitam olhares insidiosos por onde quer que vá. Com mil diabos, por quê, então, não consigo me sentir atraído mais por ela?
Tranqüilize-se, rapaz! Você não disse que as outras mulheres ainda o atraem? En-tão...Calma! Dê tempo ao tempo! Respondeu Juvenal cobrindo a boca com um guardanapo que mal disfarçava um sorriso vindimado nos cantos dos lábios. Façamos o seguinte: você me espera aqui que eu vou lhe apresentar uma amiga!
O quê? Quem?
CAPÍTULO IV – A OUVINTE
Era uma jovem com pouco mais de vinte anos, muito atraente e desinibida. Após as formali-dades de apresentação, não tardou muito para que, com um sorriso encantador e um olhar enigmáti-co, centra-se todas as atenções sobre si.
Alfredo, ainda que embriagado, recolhera-se dentro de uma antiga timidez, que os vários anos de casamento fizeram-lhe acreditar que não mais existia. Sentia-se desastrado e infantil nos pormenores de suas atitudes e repreendia-se mentalmente por estes equívocos involuntários atribuí-dos à falta de hábito. Por outro lado, um sorriso amarelo e uma atenção circunspecta às palavras de sua interlocutora cuidavam de sua postura exterior.
Conquanto todo o esforço para parecer natural, Alfredo malogrou infinitamente. Entretanto, sua autoconfiança retornava timidamente, a medida que sua nova amiga demonstrava um maior in-teresse por ele. Efetivamente, a falta de jeito e de tato de Alfredo parecia-lhe divertir o humor e cortejar seu poder de sedução.
Quando o amigo de Alfredo retirou-se à pretexto de cumprimentar uma outra amiga, obse-quiou e retirou-se da mesa sem deixar saudades, o tema predominante do assunto desviou-se lenta-mente das banalidades cotidianas para a esfera pessoal de ambos os recém-conhecidos. Esta guinada na conversa deixou Alfredo ainda mais à vontade e, o mais, a simpatia e o carisma de sua amiga encarregaram-se de obter.
Mas você gosta de sua esposa, não gosta? A medida que proferia estas palavras, a mu-lher cruzava as pernas lentamente, mordiscava a azeitona do Campari e olhava profundamente nos olhos de Alfredo numa seqüência sensual e inquiridora.
Sinceramente? Eu já não sei de mais nada: por vezes, eu a amo profundamente e me fica a certeza disto; por outras, pequenos detalhes que dentro de um casamento é tudo levam-me a crer que não mais estou apaixonado por ela. – Alfredo levantou os olhos para a mulher que inconscien-temente tentava evitar e, não obtendo nenhuma palavra em resposta, prosseguiu de chofre – Não falo isto para eximir-me de responsabilidades. Não me interprete mal! Se o digo é porque, de fato, estou sentindo muita necessidade de me abrir com alguém e você me pareceu uma pessoa excelente, além de ótima ouvinte...
Está necessitando de uma ouvinte? Hum! Normalmente, eu não me presto a este papel, no entanto, abrirei uma exceção por um único motivo: gosto de sinceridade num homem, faz-lhe parecer maduro; e gosto ainda mais dos elogios excelente e ótima.
Sorriram juntos.
CAPÍTULO V – SUICÍDIO INVOLUNTÁRIO
Na manhã seguinte, um enorme mal-estar acometeu Juvenal em decorrência dos excedentes da noite anterior. Entretanto, ao tomar posse de sua trôpega consciência, este seria o menor de seus males: toda a sua alma revestia-se de remorsos e inquietações. Apegara-se, na noite anterior e sob os auspícios de Baco, à idéia de que não mais amava Solange. Não poderia amá-la; caso contrário, como explicar a inapetência sexual que tanto o humilhava? Parecia-lhe justo pensar que Solange fazia-lhe mais mal que bem e isto revestia de licitude quaisquer de seus atos. Mas, agora, tendo os primeiros raios da manhã por testemunha e deus-sol por confidente, nada disto lhe parecia tão claro. Posto que é próprio do sol apontar os delitos que a noite mascara com sua dignidade cortesã. Se por um lado, tinha sido sim bastante magoado; por outro, suas providências foram descabidas, super-valorizadas, talvez, até mesmo draconianas. Eram os raios solares quem o dizia, peremptoriamente.
Ao abrir a porta, deparou-se com Solange dormindo no sofá da sala, tendo a televisão ainda ligada a sua frente e a paz de espírito de uma criança no semblante. A simples visão de seu sono, de sua paz e de sua singularidade asseguravam a Juvenal que ainda a amava. Amava Solange, sabia-o agora e a amava por demais.
Meu Deus, como a amo! Sussurrou enquanto desligava a televisão e sentava –se à frente de Solange para contemplá-la, para vigiar-lhe o sono, para se desculpar. Meu Deus, como poderia viver sem ela? Agora, posso ver tudo tão cristalinamente. Eu te amo e sempre te amarei, meu amor. O que será que eu fiz Que pérfidos motivos incentivaram-me a derrocada? E se Solange não me perdoar? O que será de mim? E dela? Perder alguém que se ama assim é muito mais que morrer por dentro; é um suicídio involuntário.
Não pode mais agüentar a perda que se avizinhava e, num gesto de último desejo, ajoelhou-se próximo à esposa e, aos prantos, abraçou Solange; como se abraça alguém pela última vez. Quando as lágrimas de Alfredo tocaram-lhe as faces, Solange despertou num sobressalto, fazendo Alfredo irromper em prantos mais intensos e cingir-lhe ainda mais forte entre os braços.
As lágrimas acusadoras e as culpas mudas de Alfredo desataram em Solange o nó górdio do desacalanto e da mágoa que, sob a forma de lágrimas, juntaram-se as de Alfredo. Assim permanece-ram por um longo período de tempo até que nasceu por dentre a cachoeira de lágrimas e dores, um beijo tão inesperado quanto apaixonado. Sem emitir uma única palavra, os cônjugues tudo disseram um ao outro e, ali mesmo, na sala, tornaram-se novamente ardentes amantes.
GERSON ESPINDOLA SERPA