É preciso considerar também que Marcelo estava há duas noites sem dormir, resultado da correria que se formou no quartel durante toda a semana seguinte ao atentado. Todos deviam estar preparados, para o que quer que fosse. E ele era parte importante nessa operação. Seus superiores contavam com ele, e ele gostava de seu trabalho. Não se pode cobrar um julgamento perfeito de uma pessoa nessas condições, mesmo que essa pessoa seja um militar graduado, habituado a lidar com desafios e desavenças... O problema, sabidamente, é que ele estava se sentindo cada vez mais agressivo. Às vezes, como num surto, sentia fechar seu punho, como que se preparando para esmurrar o primeiro incauto que cruzasse seu caminho... Ele nunca fora assim antes. Sempre foi a pessoa mais razoável de seu meio. Mas não era mais. Aquele sujeito ali na sua frente, discutindo com ele aos berros momentos atrás, talvez pudesse ser seu amigo, numa ocasião apenas um pouco diferente. Talvez não merecesse as seguidas coronhadas que recebeu na cabeça. “Ah, não, ele mereceu, mereceu mesmo” decidiu Marcelo. Mas isso não o tranqüilizou.
Definitivamente, sentia-se transformado, e culpava a pressão causada pela violência que o rodeava. Na televisão, via as coisas mais apavorantes. Cenas de guerrilha, no meio da cidade grande. No meio da cidade mais rica de seu País. Observava as coisas como se não fizesse parte delas, como se fosse alheio, como se aquilo tudo fosse um filme. Com as taxas de criminalidade subindo descontroladamente, com os delinqüentes cada vez mais ousados, cruéis e gananciosos, o tenente passou a considerar-se uma vítima em potencial. Sabia-se preparado para o combate no campo de batalha, onde o inimigo usa um uniforme diferente do seu, onde ele não está sozinho, num lugar onde pode-se usar de táticas, de planejamento. Na cidade, ah, na cidade, não. Ele estava, sim, em risco. E já não ia tolerar de ninguém o desrespeito à sua figura, ao que ele representava. Muito menos de um guardador de carro. “Guardador de carro – ironizava – como se isso fosse profissão”.
Já estava dirigindo há uma hora e meia quando aconteceu. A sinalização indicava a velocidade máxima: sessenta quilômetros por hora. Estava a noventa, mas com segurança, a rua era larga, não havia trânsito. Mas estava distraído, refletindo sobre seu acesso de fúria, divagando sobre o fatal destino do flanelinha caso eles estivessem à sós, de noite. Ah, se fosse de noite, num lugar ermo... Nutria fantasias homicidas, alimentava o ego com coisas que ele poderia ter feito. Assustou-se, de repente, com o carro que o ultrapassara pela direita, mas logo se recompôs. “Legal”, pensou. Considerou a possibilidade de seguir o veículo preto na mesma velocidade, mas a uma distância segura, imaginando-se capaz de reduzir a velocidade a tempo, caso o “apressadinho” (Marcelo assim o chamara), fosse multado – dessa forma, ele próprio não seria. Acelerou, mas não a tempo de levar a cabo seus planos.
Com o fechar do farol e a tentativa frustrada de cruzar a avenida mesmo assim, deu-se um acidente de proporções, diga-se, sérias. O barulho da freada trouxe Marcelo de volta ao trânsito. Já estava de volta à realidade quando se deu o choque. O barulho de lata se amassando, o quebrar dos vidros e, finalmente, os gritos. Marcelo já havia diminuído a velocidade, estava quase parado ao lado do poste onde descansava o Tempra preto do “apressadinho”.
A cena atrás do veículo preto era chocante. Diversos, cerca de sete moradores de rua que dormiam embaixo do viaduto foram atropelados pelo Fiat, que fora desviado pelo choque com o Audi roxo. As pessoas no Audi estavam desacordadas. Motorista, passageiro, e alguém no banco de trás. Cheiro de borracha queimada, gritos, choro. Mesmo assim, não havia movimento na rua. “Infeliz coincidência, dois carros chocarem-se assim, numa avenida vazia, a essa hora da madrugada” – cogitou. Gemidos, esguichos de gases de motor, cheiro de queimado. Calor. O reflexo do Audi que agora pegava fogo iluminava o vão do viaduto, fazendo da cena uma imagem digna de capa de revista – era uma perfeita pintura expressionista, feita de pinceladas cruéis. “Guerra”, pensou o militar.
O motorista do Fiat havia tirado o cinto de segurança, e agora tentava abrir a sua porta, amassada, quando observou, amedrontado, duas mãos fortes e decididas puxando a porta do passageiro. Aberta a porta direita, viu-se sendo puxado para fora. Aterrorizou-se. “Linchamento”, cogitou o acidentado. Escorado – e obrigado por Marcelo, surpreendeu-se sentado no banco do passageiro de um carro estranho e ainda sentiu um frio na espinha com os gritos que vinham do Audi. Ao afastarem-se em velocidade, ao som das sirenes que se aproximavam, ouviu-se a explosão.
Já raiava o dia. Marcelo, olhos vidrados, agia no automático, sem parar para pensar. Não imaginava o que estaria por vir.