Seco. Frio. Parado. Nenhum brilho, nenhuma lágrima. O olhar nada revelador. Nada a indicar o nó na garganta, a dor no peito, o embrulho no estômago. Não havia qualquer surpresa, ao contrário, era morte anunciada.
De fato, ela continuara gentil, palavras delicadas e sob medida para agradá-lo. As demonstrações de carinho também permaneceram, mas algo se quebrara. Ele sempre vasculhava a memória em busca do detalhe indicador do ponto de ruptura, mas não encontrara o que sentia estar presente. Certamente fora algo que ele próprio dissera. Evidente o desencanto dela. Não sentia mais os seus arroubos apaixonados, apenas elogios e referências a tudo que ele representara. Aquele tom nostálgico foi o que o levou a perceber que ela se distanciara.
Desde o início ele a distinguira na multidão. Ela exercia mais que fascínio, chegava mesmo a dominar todos os homens que a cercavam, os quais pareciam uns bobocas ao seu redor, disputando as suas atenções.
Ele chegara de mansinho. Pouco a pouco ela se interessou e teve a iniciativa. E rapidamente o conquistou. Tomou-o para si e a ele, sem reservas, se entregou. Parecia ser apenas sexo, puro sexo, muito sexo, sexo, sexo... E era mais que isto. Havia afinidade, identidade e complementaridade. Realização recíproca. Seriam felizes para sempre.
A vida madrasta assim não quis. Viviam em mundos e tempos diferentes. O tempo, inexorável cumpriu o seu papel. Não apagou o fogo da paixão. Não desfez a cumplicidade da alcova. Mas perdeu sentido o que jamais teve compromisso com o futuro ou com o cotidiano.
Ela voltara ao mundo, distante dele. Saíra da ilusão, da fantasia e retornara aos seus livros, aos seus discípulos, ao seu séquito e, principalmente, a um novo amor.
O gosto amargo na garganta seca inibia o doce sabor da recordação. O seu violino, peça delicada, sofisticada e rara não mais vibraria ao toque de suas mãos. Outros solistas certamente o levariam a aplaudir, de pé, o recital que ele não mais executaria.
Manoel Carlos Pinheiro
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