Usina de Letras
Usina de Letras
32 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62386 )

Cartas ( 21335)

Contos (13272)

Cordel (10452)

Cronicas (22545)

Discursos (3240)

Ensaios - (10442)

Erótico (13578)

Frases (50774)

Humor (20067)

Infantil (5484)

Infanto Juvenil (4802)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140863)

Redação (3319)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1962)

Textos Religiosos/Sermões (6231)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A CONFISSÃO -- 24/02/2002 - 20:01 (Paulo de Goes Andrade) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A confissão

Paulo de Góes Andrade

No sábado, depois da missa das 8 horas, o átrio da Matriz ainda contava com muitos fiéis e devotados paroquianos, entre esses, os que vinham dos sítios e fazendas do município, onde viviam; uns ajoelhados, enternecidos, olhavam para as imagens dos seus santos preferidos, distribuídos nos seis altares que compunham o ambiente. Ao fundo, em destaque, o altar-mor do santo padroeiro. Outras pessoas, enfileiradas, aguardavam a hora da confissão. Eximiam-se, assim, dos pecados para, de consciência lavada, receberem a comunhão na missa do domingo seguinte.
Como não havia mais ninguém na fila do confessionário, Artêmio ajoelhou-se e, murmurante, deu início ao que lhe estava entalado na garganta para o vigário, um homenzarrão alourado, de olhos azuis e de aparência que levava as mulheres a considerá-lo um “tesão de homem”. Era, por isso, obviamente, desejado por muitas solteironas e até por certas damas da cidade. Na barbearia de Zé Inácio, na praça central, onde muitos só freqüentavam mesmo para trocar conversa fiada, a vida alheia era o prato preferido. Nem o padre escapava. O irlandês era mesmo quem não escapava. Aí alguém começava: “... esta cidade vai ficar cheia de galeguinhos dentro de pouco tempo”. Outro, com desdém, completava: “... isso é bom, rapaz, pra melhorar essa raça feia de cabeça-chata ...! O riso era geral. E tome veneno!...
John Reynolds era o nome do pároco irlandês que, chegou ao Brasil tão logo se ordenou em Waterford, onde nasceu, ao sul da Irlanda. Foi designado para aquela paróquia do interior do Ceará, onde vivia já por muitos anos. Enamorou-se tanto com a chapada da Ibiapaba, que dali, dizia, não desejava mais sair, se dependesse dele. Na boca do povo atendia mesmo por João Reinaldo, como pediu que o chamassem. Ficava bem mais fácil assim.
Artêmio não suportava mais as indiretas que ouvia. O único filho, Anderson, diziam que não era dele. Nenhum traço fisionômico, na verdade, tinha do pai. Aqueles olhos azuis e os cabelos claros em nada revelavam a hereditariedade paterna. Da mãe, comentavam, herdou o gênio e a formosura. Era, de fato, um garoto introvertido e bonito. O seu nome foi escolhido pelo padre João Reinaldo, que o batizou.
Depois de certos detalhes de sua vida conjugal, Artêmio foi incisivo:
- Padre, se eu descobrir que o Anderson não é meu filho legítimo, eu sei que isso é um pecado mortal, perdoe-me, mas eu mato o pai daquele filho da p...! Não completou o palavrão.
Por onde Irene, sua esposa, passava, não escapava aos olhares admirados e cobiçosos dos homens. Não era para menos. De pele clara e cabelos castanhos, formava, mesmo com a sua pequena estatura, um conjunto feminino admirável. Vaidosa, como era, cuidava muito bem do visual. Sempre penteada, completava-se com a maquiagem primorosa, dando destaque aos lábios carnudos cobertos de um vermelho-escuro do batom que usava. Quase não respondia os cumprimentos que lhe faziam, principalmente os marmanjos. Era tímida. Mas isso não a impedia de ser insinuante. Artêmio, de certa forma, alheiava-se aos encantos da mulher amada. Talvez fosse passivo, zombavam os galanteadores, que se entreolhavam e não se continham à sua passagem pelo passeio público: “... Isso não é uma mulher. Isso é um avião!... “ e outros elogios mais, que ela bem que ouvia, mas fazia que não. Envolvido em seu pequeno, mas sortido negócio de miudezas, em sua loja no centro comercial da cidade, Artêmio ainda viajava para o sul uma vez ou duas por mês, em busca de novas mercadorias ou para tratar de assuntos afins com os seus fornecedores. O sócio ficava à frente do seu comércio. Irene não tinha jeito para aquilo, como deixou claro para o marido, quando casaram.
Talvez por isso, ou por nada ter que fazer, dedicou-se, de corpo e alma, às obras assistenciais do padre João Reinaldo para com as famílias carentes da periferia.
E ela, em passos lentos, parecendo imitar uma gazela, vestida, como sempre, com roupas que mostravam as curvas perfeitas do corpo, que sobressaíam acentuadas na região glútea, caminhava rumo à igreja, o trajeto que tinha por costume. Com outras religiosas, dedicava-se também, ela com exagerado desvelo, à decoração do templo para as cerimônias principais.
- Méo querrida parroquiana, neguna perzona téim direcho de julgare sua someiante. A tua moglie, querro dizer, a tua espossa é una “santa” moglie. Ella viver exclussive per te, per la famiglia e per las cosas de Dio!
No seu sotaque, ainda bem carregado, num português mesclado de italiano, já que viveu também, no tempo de seminarista, em Roma, padre Reinaldo sabia que o pecador, naquele confessionário, não era o coitado do Artêmio. As supra-renais do vistoso irlandês encheram de adrenalina o seu organismo, enrubescendo ainda mais o seu rosto. O desabafo de Artêmio, eu mato o pai daquele filho da p... levou-o a imaginar mil coisas naquele momento. Os seus restos mortais não seriam trasladados para o seu país. Isso já era determinação. Então, o seu enterro seria um acontecimento extraordinário, sem precedentes naquele lugar. Seria bem concorrido; haveria centenas de pessoas lamentando e muitos chorando a grande perda. O cemitério não caberia de tanta gente. Grinaldas e mais grinaldas seriam colocadas em cima do seu túmulo. Até o arcebispo, responsável pela arquidiocese, lá da Capital, enviaria uma das mais belas coroas, com flores especiais. Ao mesmo tempo pensava também que poucos iriam ver o seu corpo baixar à sepultura. Estariam, por certo, revoltados com a sua atitude. E parecia ouvir muitos comentando: “Aquele garanhão mereceu! A esta hora, já deve estar no Inferno, levando tição em brasa no rabo!”. Então na barbearia do Zé Inácio...!
As reivindicações da minoria católica, a que pertencia sua família, por direitos civis, quando ressurgiu o IRA (Exército Republicano Irlandês) nos anos 60, vieram-lhe à cabeça naquele instante. Devia ter ficado em seu país. Por quê enveredou pela carreira eclesiástica, se não iria ser fiel aos dogmas da Igreja? Condenava-se. Como cidadão comum, com os seus compatriotas, teria lutado, a ferro e fogo, pelas convicções comuns aos seus irmãos de fé. Por certo já teria morrido, heroicamente até, num daqueles confrontos entre protestantes e católicos, e não assim como co-responsável pela situação de adultério, que estava vivendo.Teria sido melhor, bem melhor mesmo, do que tomar um balaço na cabeça agora, ou mesmo uma facada no peito ou, talvez, na garganta, pensava ali, diante das ameaças de Artêmio.
- ... pois bem, padre! Eu não quero acreditar na infidelidade de Irene. Mas, olhe pra mim! Olhe bem, padre! Eu sou louro? Eu tenho os olhos azuis? E nem tão pouco a minha mulher, como o senhor bem conhece? Continuava Artêmio, com a voz embargada, na sua confissão, que era mais um desabafo.
Padre John Reynolds, acuado naquele cubículo de madeira, comum ainda em muitas igrejas do interior, quase sem ventilação, procurava, com palavras consoladoras, acalmar o seu paroquiano, que, irredutível, insistia no intento de liqüidar logo esse ou aquele que havia enfeitado a sua testa com dois belos pares de chifres. O suor escorria-lhe pela face rubra, que enxugava a todo instante com um lenço já ensopado. O calor de trinta e poucos graus, que assolava toda a região da Ibiapaba, era causticante. Nunca se viu um mês de dezembro tão quente, reclamava o povo.
- Méo pressada irmáo Artemió, tu desconfia de algo perzona?
Só Deus sabia da angústia por que passava o reverendo Reynolds, para fazer aquela pergunta e esperar a resposta do pobre Artêmio. Ainda lhe sobrou tempo para procurar no arquivo de sua memória algum paroquiano que fosse louro e de olhos azuis, assim como os seus. Não encontrou ninguém, pelo menos entre os freqüentadores assíduos da igreja. Imaginou até um visitante, amigo da família de Artêmio. Quem sabe, perguntava-se. No seu íntimo, clamou ajuda dos Céus, confessando-se um pecador. Fez mil juras de arrependimento antes de ser “condenado à morte”, como sabia que estava.
- ...então, padre Reinaldo, confessava Artêmio, é porque não estou bem certo; não tenho certeza absoluta. Mas o senhor sabe de quem eu ando desconfiado, muito mesmo, enfatizou, sabe de quem? Adivinhe!
O irlandês, temeroso, arranjou coragem e respondeu:
- Éo náo ter ô menôr idêa, pressado Artemió...
O martírio do reverendo chegava ao fim. Artêmio, meio descontrolado, bateu com a mão direita fechada na madeira do confessionário, e revelou, cheio de ódio:
- Padre! Que Deus me perdoe se eu estou errado! Mas estou suspeitando do sacana do Manoel Galego. Aquele “portuga” de olhos azuis, dono da padaria! O senhor sabe quem é, não sabe, padre? Esse “camarada” é um mulherengo dos diabos. Todo mundo sabe da fama desse sujeito. Eu nunca fui com a cara dele, o senhor acredita? Se eu descobrir..., o senhor já fica sabendo, ele vai morrer antes do tempo! Escreva o que eu estou dizendo!
- Uuuffff! Soprou, aliviado, padre John Reynolds. E fazendo o sinal da cruz, falou pra si mesmo:
- Thank God! Thank God! Thank God!


Brasília (DF) – 10 / 12 / 2000



Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui