Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli*
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Olhavam para ele com atenção e curiosidade. De onde teria vindo? Era uma imagem de mulher esguia num pedestal circular que apoiava um pêndulo com a mão direita. Atribuíam-lhe épocas, estilos e lugares. Crianças e adultos tratavam de fazê-lo funcionar, acionando o pêndulo. Ele dava meia dúzia de penduladas e parava. Os entendidos diziam que jamais trabalharia e que nunca teria passado de uma peça de contemplação. Devido à resistência do ar, talvez necessitasse de uma redoma de vidro para tornar a andar com o auxílio do vácuo.
Teriam os antigos sido tão ingênuos a ponto de criar uma escultura com movimento pressentido na articulação de um braço para condená-la à imobilidade?
Passou o tempo que não marcou a sua própria passagem. Na imaginação de todos, só mesmo por um passe de mágica ele ganharia o movimento que nunca apresentou ou funcionaria a partir do elo suspenso no transe de um comando ressuscitador.
O relógio continuava ali, empoado, estático. Mas permanecia belo e atraente. Alvo de comentários e honrarias. Cada vez mais só. Muitos de seus irmãos talvez já tivessem morrido para escapar de um futuro extático. Cada vez mais raro e cobiçado na sua meia função de escultura sem dinamismo. Reunia tudo para vir à vida. Mostrador, ponteiros, corda e até aquelas rodas que endentavam umas às outras num maquinismo.
Se voltasse a representar o tempo dali para frente, seria reverenciado com o olhar de quem busca mover-se na contemporaneidade.
Era preciso escavar gerações para restaurar a história de um atraso que não vinha adiantando. Do tempo que não deu os ares das horas.
Relíquia é assim. Sobrevive além do criador. Encontra uma mão que a lança no canto protegido do esquecimento, cai em sono profundo e desperta no sopro atávico de um outro que resolve animá-la.
Corda dada, máquina limpa e lubrificada, habilita-se o pêndulo para o seu concerto. Com a corda toda, vai compondo o andante do tempo.
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Continuaram a olhar para ele com mais atenção e curiosidade. Para onde estaria indo? Em que memórias encontraria o seu pulsar?
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Homenagem que o autor rende à recuperação de um antigo relógio de estatueta adquirido por seu pai no início do século.
*Médico psiquiatra da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
P.S.: Nessa produção, a imagem nasce antes da escrita. Nos idos da infância. O texto vem para dar conta de uma história – a que ficou – desse relógio – o que fincou a memória.