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Contos-->O DENTISTA -- 10/01/2002 - 06:27 (Paulo de Goes Andrade) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O dentista
Paulo de Góes Andrade

Muita gente de Vila dos Remédios só o tratava de “doutor” Eleutério. Ele, diziam as más línguas, nunca passou nem em frente de qualquer escola superior. E odontologia, profissão de poucos na época, limitava-se às principais capitais do nordeste.
Carregava a frustração de não ter freqüentado uma faculdade, de não ser um “doutor de verdade”. Confidenciou à mulher, Maria das Dores, certa vez. Contou que aquele desejo era um sonho que alimentava desde criança, quando brincava “de dentista”. Improvisava com objetos, que lembravam instrumentos utilizados pelos verdadeiros profissionais, um consultório dentário, fazendo seus “clientes”, além dos irmãos, os amigos da vizinhança.
Eleutério, então, não mediu as conseqüências que poderiam advir daquela sua decisão. Não pensou duas vezes. Para se “profissionalizar”, com a prática, desde rapazola, de extrair com alicate dentes infeccionados de animais, no pequeno sítio do pai, andou pelos ferros-velhos da Capital, adquirindo aqui e ali o material necessário e montou o seu gabinete, que ficava num cômodo anexo à sua residência. Para lidar com a broca não foi difícil. Curioso como era, observou, atentamente, o jeito como dr. Anacleto manuseava aquele instrumento nos seus dentes cariados, da vez que foi à Capital. Isso há muitos anos. Mesmo assim, não esqueceu. Estava convicto do seu desempenho. Sem eletricidade, pedalava uma engrenagem para acionar um pequeno motor, que, por sua vez, fornecia a rotação necessária à sua broca. Naquele tempo, pelos idos de 1940, não se falava nessa história de exercício ilegal da profissão. No caso, aqui, da odontologia. Então, Eleutério foi à luta.

Não precisou fazer propaganda. Também não havia meios para isto, a não ser mesmo a boca do povo. Mas, não tardou. Logo a gente simples do povoado ficou ciente da instalação do consultório do “doutor” Eleutério.
Na porta do gabinete colocou uma placa: Estou trabalhando. Ali, com a fechadura trancada, deixava o tempo passar mais lento do que lá fora, no vilarejo. Não tinha pressa, principalmente quando atendia mocinhas e mulheres.
Maria das Dores, a bondade em pessoa, na sua santa ingenuidade, não dava ouvidos ao que falavam do marido. Mulherengo quase todo homem é de nascença, proclamava. Mas, para Eleutério, só existia ela, batendo no peito, garantia-se vaidosa. Nunca duvidou da sua fidelidade desde o dia que ele jurou no altar, quando casaram, para o padre Alípio, o respeitadíssimo vigário da região. Confiava cegamente. Botava a mão no fogo pelo seu “bem”, como o chamava.
Na hora das refeições, as crianças, proibidas, não batiam na porta. Não era necessário também. Da sua pequena sala, ouvia perfeitamente a voz da esposa.
- O almoço tá na mesa, bem! A merenda tá servida, bem!
Não dava importância às chamadas de das Dores, como a tratava, enquanto estava com uma cliente na sua desconfortável cadeira, mas que servia, até com sobra, para o que se propunha.
Uma dia, por alguma razão, com o seu jeito maneiroso de falar, o questionou:
- Bem, seja franco! Tu terias coragem de me trair com uma dessas sirigaitas que vêm aqui tratar dos dentes? E ele, que era meio “hiper”, todo apressadinho:
- Qué, qué... isso, mulher! Tu, tu... tás louca! Qui... Qui conversa besta! Gaguejando e meio desconfiado, respondeu. E ela, sem se alterar:
- Sabe o que é, bem. É porque eu noto que tem dessas meninas que nunca terminam o tratamento. E demoram demais, fechadas lá dentro contigo!
Ele explicava, mas não justificava. Saía sempre, como se diz, pela tangente.
Ela, que era de paz, mas não era boba, andava meio cabreira com aquelas vozes que vinham do consultório:
- Não vai doer não, doutor Eletério? Será que não? Estou com medo! Ui! Ai!
Era sempre a mesma lamúria. E ele, muito paternal “pro meu gosto”, pensava Maria das Dores:
- De maneira nenhuma, filhinha. Vou passar isto aqui, oh! Você não vai sentir nadinha. Garanto. Se doer, você diz, que eu tiro, tá?
Devia ser clorofórmio, que era o anestésico usado pelos dentistas práticos nos povoados nordestinos. Não era aquilo, no entanto, que ela imaginava...

Sentia-se meio enciumada, porque o marido, sabia muito bem, não era de tanta instrução, mas era educado e de bom relacionamento. Mas, não tanto quanto tratava as suas jovens clientes. No somar dos dias, dos meses e dos anos, aquilo foi crescendo no seu pensamento num misto de confiança e dúvida. Pesando mais para dúvida.
Mesmo com todo o seu despreparo, criou fama de bom “profissional”. Contudo, o trabalho pouco rendia financeiramente. Maria das Dores não se conformava. E, vez por outra, sugeria ao marido fechar o consultório e se dedicar por completo à fazendinha que herdou do pai, onde criava algumas vacas leiteiras e caprinos, principalmente.
Tempos depois, face à insistência da mulher, Eleutério largou de vez o ofício. Os sábios conselhos da companheira de tantos anos influíram sobremaneira em suas vidas. A fazendinha cresceu tanto, com os rebanhos procriando admiravelmente, que mandou a família para a sede do município, oferecendo, destarte, melhores condições de vida, inclusive para os estudos dos filhos. Quis também, com essa providência, afastar a mulher de possíveis mexericos, que adviriam, mais cedo ou mais tarde. Estava certo disso.
As “línguas ferinas” logo entraram em cena. Aliás, essa prática é normal e faz parte do cotidiano das nossas pequenas cidades. Diziam, amiúde, que muitas crianças dali, de Vila dos Remédios, foram concebidas no consultório do bondoso “doutor” Eleutério, que não povoou mais aquela região, porque havia sido capado, submetido que fora a uma cirurgia radical da próstata. Infelizmente (ou felizmente, achavam uns), sua impotência encerrou a sua carreira de “dentista” e, principalmente, de “reprodutor”, cochichavam as donas “mariquinhas” e “maricotas” daquele lugar.
A vida continuou mansa e fagueira até o dia em que una bella ragazza, no verdor dos seus quinze anos, o surpreendeu, como a ingênua e doce Maria das Dores, quando repousavam em suas redes na varanda da casa do sítio, pedindo-lhe a bênção e o seu reconhecimento como sua filha legítima, “gerada” que fora, como explicou, na sua velha e incômoda cadeira de dentista.
Eleutério não contestou a ragazza.

(pgoes@terra.com.br)




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