Na manhâ seguinte, Inconsciente, fui retirando todos os seus objetos pessoais de dentro de casa. Pequenas coisas que traziam sua imagem de volta. No final restou somente as nossas cartas de amor. Todas essas confissôes que colocamos no papel, durante uma certa época, na esperança de que os nossos sonhos se tornem realidade. Releio duas ou três cartas e algumas lembranças agradàveis ressurgem uma outra vez.
Numa das cartas digo-lhe : “Acredito mesmo que nada é perdido inteiramente na nossa vida. Ainda ontem sonhei que beijava Valérie, ela chorava diante de mim, eu a abracei carinhosamente e nossos làbios se tocaram. Na vida real nunca beijei Valérie. Passàvamos vàrias horas falando das coisas do mundo e dos sentimentos, mas nâo tocàvamos nas entrelinhas do sexo.
No meu sonho eu a beijei longamente e todos os sentimentos ocultos que tinha por ela brotaram. Depois deste sonho compreendi finalmente que as mulheres que amamos no passado ficam retidas para sempre nas nossas memòrias.
Cada uma delas tem um local importante na minha memòria. Algumas que nem sequer cheguei a amar verdadeiramente, incrustaram-se na minha vida, que mesmo passado vàrios anos, ainda sonho com elas. Nâo posso evitar. Elas estâo là, latentes, alojadas em algum canto no meu subconsciente e sem que e nem porque aparecem na minha existência presente. O verdadeiro amor nunca morre, mesmo quando nâo existe a mìnima possibilidade de uniâo, persiste um vìnculo fictìcio e màgico que une para sempre dois seres que se amaram em uma certa época da vida.
A ser que ama realmente està condenado a este amor, por mais que tente, nâo pode se desvincular deste amor, uma prisâo de segurança màxima, mesmo passado anos, a maldiçâo persiste : o amor fica impregnado. Algumas mulheres chegam mesmo a dizer : “Jà amei muito, hoje nâo sinto mais nada por ele.” Na verdade ninguém pode escapar as raìzes profundas do amor. Quando digo a uma mulher que ainda a amo, mesmo passado 10, 20 anos, ela fica surpresa, finge nâo compreender, porém, todos os sentimentos ocultos retornam e sinto as mesmas emoçôes. Sâo emoçôes antigas retidas num baù da minha memòria. O amor pode ficar latente, feito certas sementes, mas nâo podemos negar que ele existe, preciosamente vivo no mais profundo do nosso ser.”
Enquanto leio essas cartas fico imaginando o cotidiano matinal de Matilde : o copo de café quente, a preguiça ainda no corpo, perambulando sozinha no apartamento, divagaçôes, lista das compras, limpeza na cozinha, as notìcias no ràdio, acaricias os teus seios, brevemente leves frissons, lembranças de outros homens, presente-futuro, pensamentos vàrios e algo diz que mais um dia começa.
Numa de suas cartas ela diz : “Sâo dez horas da noite. Là fora Paris pulsa e vibra ao ritmo frenético de um tambor. Gritos de crianças e turistas. Copos que se quebram num sinal de despedida. Eu desejo apenas o meu vinho rosê e a minha solidâo. Usufruo desta solidâo como se estivesse no purgatòrio de Dante. O apartamento està vazio. Aos poucos a casa vai se esvaziando, todos os pertences antes importantes, rotineiros, amontoam-se nos infindàveis cartôes. As valises estâo plenas e eu submissa a este tempo suspenso. Sei que é preciso mudar. Estou consciente das mudanças. Minha vida é essa rotina : partir.
Uma amiga que me escreve regularmente resume tudo : ‘Tenho saudades daqueles momentos em que, durante uns 30 minutos, podíamos nos dar ao luxo de fantasiar com os transeuntes, enquanto o mundo pegava fogo e o dia-a-dia massacrante nos espreitava. Essas tuas eternas viagens ou partidas têm cara de aventura rejuvenescedora. É bom ficar saindo de um lado para o outro regularmente; ajuda a escapar dessa coisa esmagadora que é a rotina. Rotina, aliás, é o que não falta por aqui. Tudo que está acontecendo já aconteceu, as mesmas pessoas, os mesmos ônibus, os mesmos tudo...Tem horas - bem cá entre nós - que me sinto como um zumbi, um morto-vivo andando pra lá e pra cá... O pior é que a gente olha para um lado e outro e não vê nenhuma perspectiva de mudança.’ Tenho vontade de chorar por todos estes mundos perdidos que se acumulam atràs de mim.”
Numa de suas partidas ela me escreve : “Chorei durante toda a noite por nâo saber evitar esta sensaçâo de perda. Eu nâo sou mais a mesma. Nâo me encontro. Lamento a partida desta mulher que você fez nascer e eu nâo conhecia. Ontem ao escutar tua voz no telefone, eu finalmente encontrei essa desconhecida : tudo isto realmente existiu ? Eu nâo sonhei este amor ? Que prazer de sentir que este amor é sempre là, qualquer parte, entre eu e você.”
Gosta desta idéia de que descobri uma mulher "desconhecida" que vivia escondida dentro dela. Quantos personagens ? Inùmeros. Acima de tudo acalento esta imagem de que me reservas as maiores carìcias, os prazeres insanos, as palavras e as emoçôes mais fortes. Mesmo se atualmente tudo isto seja no campo do metafìsico. Sempre achei que ela era uma mulher “aberta”, aberta no sentido mais amplo e irrestrito que podemos imaginar. Uma mulher livre para as palavras, os sentimentos, as penetraçôes incessantes. Quando tocava no seu corpo, eu tinha certeza que ela iria me receber por inteiro. Sem meios termos, sem falsas promessas, sem medos. Essa sua disposiçâo crescente para as coisas do amor me encantava.
Numa outra carta ela diz, quase lamentando, que o fio tenso entre nòs se alimenta da nossa separaçâo. “Às vezes, tenho medo do nosso distanciamento e algumas vezes tenho medo da nossa aproximaçâo. Nestes dois extremos percebo a força da tua ausência e a necessidade de te falar constantemente. Tuas palavras fazem-me falta cruelmente. A separaçâo é uma faca de dois gumes : ela pode aproximar ainda mais ou o desfiar do tempo acaba por inteiro a uniâo sagrada. Por quê é preciso sempre partir ? Tudo parece difìcil exprimir com simplicidade. De novo encontro-me entre forças contràrias, onde tua ausência me aprisiona, ao invés de liberar a minha minha voz. Eu acredito que sò estarei melhor quando enterrar por completo este nosso relacionamento, embora, essa idéia atualmente me é insuportàvel. Nâo posso viver este amor sem o realizar, é uma verdadeira tortura, pois para mim, a realidade é a essência mesma deste amor.
È verdade que a “realidade” de està fisicamente contigo faz falta. Você aborda a “morte” do nosso amor. Por quê enterrar ou tentar enterrar alguma coisa de bela ? A realidade constitui a pedra màgica que pode transformar a lama do cotidiano em ouro de uma vida verdadeiramente vivida.”