A aeronave estremeceu como se houvesse despencando quinhentos metros. Solange Gomes fez o sinal da cruz, orou em silêncio pedindo proteção divina, e em seguida, abriu um jornal deixado pela empresa aérea para os passageiros; depois, ergueu as vistas e indagou: — De que falávamos antes, Alice? — Da morte de Androceu. — Faz quase dois anos que ele morreu. Por que pensamos nisso agora? — Talvez por causa da presença... — Que presença? Cruz credo! — A viúva. A viúva esta neste voo. — Convenhamos, falar em morte quando se está voando a trinta e seis mil pés é assustador! — “Separada da corrupção a alma humana não é formada de nenhuma coisa feia.” — Vi isto em algum lugar... Alice sorriu. Abriu o notebook e releu o cruzamento com o Auto da Alma, que publicara no Portal Literal.
Necessário foi, amigo, que nesta triste carreira desta vida, para os muitos perigos, a Alma houvesse de alguma forma, encontrado guarida. Pousada com mantimentos, mesa posta em clara luz e fartura, sempre esperando com dobrados mantimentos a criatura, dos tormentos que o Filho de Deus resgatou na Cruz. Comprou, penando... Sua morte foi avença, dando, por dar-nos paraíso, a sua vida...
— Literalmente, ante esta turbulência — disse Solange — trocaria o voo desta aeronave pela segurança de um livro. — Era o que eu fazia. Estive em voo literário com o Auto da Alma. — Já cansaste, alma preciosa? A outra sorriu. — A viagem gloriosa nos espera. — Sem graça, essa viagem gloriosa a trinta e seis mil pés, tem sombra de premunição! — Falo do Salon du livre. Leste o trabalho do Arnaldo? — Li. Muito estranho, parece que se prepara para deixar o mundo dos mortais. — Arranjos articulados. Arnaldo é mestre nisso. O mar está sempre agitado dentro dele. — Pessoas começam uma tempestade em seus pensamentos e acabam sendo o que pensam ser. — Verdade, os pessimistas vivem turbulências em águas tranquilas, e naufragam, e afundam e se afogam em suas dores. — Será por que Arnaldo bebe tanto? — Deve ter medo de avião. E, uísque de graça, quem não bebe?... — Nada é de graça em voo comercial. Tudo está incluso no preço da passagem aérea. Até o sorriso da aeromoça é pago pelos passageiros. Fernão olhou com cara de quem não gostou do que ouviu. Ele sempre teve profunda admiração por aeromoça. Nunca viu uma aeromoça que não fosse sorridente, educada, bonita, e no mínimo, bilíngue. — Não lhe parece estranho? A viúva de Androceu não desgruda do padre. — Isso não me escandaliza. Ela é viúva e o padre Davi não exerce mais o sacerdócio. Pobre viúva, mesmo casada, nunca teve marido. — Sofreu muito: tolerar um bêbado por tantos anos!... Limitada como cavalgadura adornada com antolho, Chanana Tupixá finge que nada ouve, e silencia. Padre Davi dormia, e sonhava. Imagens do juízo final caíram-lhe sobre a cabeça como um mar de vidro misturado com fogo, e o Auto da Alma se lhe passou na mente. Lentamente, a respiração diminuiu, e as batidas do coração se tornaram menos frequentes. Ouviu o rufar de asas e uma voz que dizia: ‘Venha!’ Foi. Foi levado em espírito e viu São Miguel tentando resgatar sua alma e o Diabo querendo arrastá-la para as trevas. Chanana o despertou com duas cotoveladas. — Como podes dormir diante desta situação de perigo por que estamos passando? — Pesadelo, minha filha; pesadelo... Sonhei que o avião tinha caído sobre um mar de vidro. — Sobre este mar, um dia cantaremos a glória Deus. — Que não seja agora. Ainda não é hora da morte. Fique tranquila, depois da tempestade vem a calmaria. A turbulência vai passar. O avião alcançou novamente a altitude padrão em voo de cruzeiro e nivelou muito acima das nuvens. Pela janela, duas abóbadas celestes podiam ser vistas, uma abaixo da aeronave e outra, acima dela.
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Adalberto Lima, trehco de "Estrada sem fim..."
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