A turbulência se prolonga por tempo superior ao previsto pela tripulação e visíveis danos na fuselagem são percebidos pelos passageiros. Casados que há tempos não conversavam, mantinham agora as cabeças coladas uma à outra e balbuciavam alguma coisa ininteligível. Irmã Paola tentou debulhar um terço, em voz alta, e não conseguiu. No meio do corredor, um homem ergueu a voz: Sou padre Davi! Pelo poder que me concede a Santa Madre Igreja, eu perdoo todos os vossos pecados, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Alguns responderam: Amém! Muitos balbuciaram palavras quase inaudíveis, outros, apenas moviam os lábios. Fernão entrou na cena de seu batismo, viu os pais e padrinhos na Igreja da Consolação. Viu também a pia batismal com água. Pessoas da comunidade acendiam velas no Círio Pascal. Com um crucifixo na mão, o sacerdote ungia a testa e o peito das crianças com o óleo dos catecúmenos. Viu ainda um animal asqueroso levantar-se do mar.
A Fera tinha dez chifres, sete cabeças e muito poder sobre a Terra. A fera soprava na mente dos cristãos bombas de pensamentos infladas de ganância, vaidade e orgulho. Houve um clarão, seguido do ribombar de mil trovões. Abriram-se livros, e ainda outro livro, que é o livro da vida. Miríades de anjos entoaram um coro diante do trono do Cordeiro. Mostrou-lhe então o anjo um rio de água viva que brotava da pia batismal. A mãe traçou uma cruz na testa do filho. Houve uma explosão que só o menino ouviu. E chorou. O animal desapareceu numa nuvem de fumaça negra. Fernão viu ainda Moisés no monte Nebo jogar seu manto para Josué: “O que está oculto pertence ao Senhor, nosso Deus; o que foi revelado é para nós e para nossos filhos. Nada temas.”
Passou em seguida o manto para Josué e Josué passou o manto sobre a cabeça do menino. Veio uma nuvem luminosa e o envolveu. Extático, Fernão desprendeu-se do sobrenatural e lentamente, retornava ao mundo dos mortais viventes. E agora se via em voo rasante sobre o mar. Não muito bem desenhadas, traçou uma cruz na testa, uma na boca e outra no peito. Objetos, poltronas e bagagens voavam em todas as direções e se chocavam, ora contra a fuselagem, ora contra os passageiros e tripulantes. Gravemente ferido, o corpo do padre estava estendido, a fio comprido, no corredor da aeronave.
—Tem algum médico a bordo? — perguntou um comissário.
André conseguiu, com dificuldade, pegar sua maleta. Imediatamente, doutora, Tânia Jiló também apanhou a dela. Algum metal pesado os atingiu e suas maletas foram sugadas pela janela quebrada. Também foram sugados muitos passageiros e lançados para fora da nave. Nathalie evitou o choque com um notebook que passava voando.
Abaixou-se e sentou numa poltrona ao lado de uma velhinha morta. Arrependeu-se de ter avisado a Hemor que Fernão estava a bordo. E... se ao invés de desviar dos nimbos, o piloto resolvesse entrar em rota de colisão com eles? Fernão é ‘esquizo’, Hemor também. E se Fernão invadir a cabine de comando? E se os dois entrarem em luta corporal em pleno voo?... Nathalie fechou os olhos e se viu dialogando com Dom Pierre Chardin. “Será que desde o primeiro momento de vida, até a morte, somos seres espirituais passando por experiências humanas, ou seres humanos passando por experiências espirituais?” Levantou-se segurando em uma poltrona sobre a qual um corpo curvado deixava livre o encosto. Desmaiado, ou morto. Talvez. Teria Deus escolhido aquela hora para morrerem tantas pessoas ao mesmo tempo? Sobreviveria alguém ao acidente? Talvez fosse a hora do piloto.
Os outros eram passageiros que estavam no voo errado, na hora errada. “Brevê vencido’, argumentou a voz do eu paralelo. “Acaso brevê vencido é causa mortis?” — Contrapôs o anjo que assiste o homem nos momentos de aflição — Ninguém confere se o brevê está vencido, e embarca numa viagem para a vida ou para a morte. Os humanos têm muita confiança no homem e pouca em Deus — concluiu o anjo — As pessoas vivem em uma sociedade que dita regras coletivas para seres individuais, como se os humanos fossem bens de consumo, a escorrer na esteira de produção das grandes fábricas. Ou como se a vida fosse uma ficção que se escreve em livros. “ Tens visto muita novela, Ravenala. Vire a página. Temos um avião prestes a cair.”
Ainda sentado, Fernão acredita que a qualquer momento a aeronave se espatifaria nos ares. Cairia contra o solo, ou em violento choque com o paredão das águas. Nathalie assentou-se juntinho dele e estendeu-lhe a mão. Agora ou nunca — Pensou Fernão e, entregou a ela o bilhete guardado há anos, com anotação recente. “Leia o verso.” Leu em silêncio e ouviu os gritos do coração. — Vai dar certo, disse Nathalie. Colocou o bilhete no bolso do uniforme e voltou à cabine do avião, reconstruindo na mente as lembranças de sua história, quando trabalhava na casa de Raquel, mãe de Fernão.
***
Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou." (ficção)
Imagem real Google
Enviado por Adalberto Lima em 07/04/2018
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...E aquela blusa que você usava Num canto qualquer tranquila esperava. —Roberto Carlos—
Era dezenove de abril. Champanhes estouraram. Balões subiram decorando o teto com diversas cores. “À saúde dos noivos!” Tilintaram as taças em sintonia com um coro de vozes. “Viva os noooivos...”
O jantar foi servido, sem que houvesse tempo para muita conversa.
— Os nubentes estão cansados — disse alguém em tom zombeteiro. — Cansados de quê? — De esperar que os convivas se retirem.
Houve uma explosão de riso, seguido de pisadas de vultos que se retiravam.
Os noivos ficaram sós e o que se passou entre quatro paredes, nem as paredes devem saber.
No dia seguinte...
— Larga essa vassoura, Morgana... Morgan... Morguinha... — Comerás o pão com o suor do teu próprio rosto. — Posso te ajudar? — Só temos uma vassoura. Recolha as bexigas e as garrafas. Ponha os cristais na pia... — Deixa que eu arraste os móveis. São pesados demais. — Lá em casa, sempre carreguei o piano.
Robert lembrou-se do piano de cauda da casa dos Castros. Mas com certeza, Morgana falava mesmo era do trabalho difícil, principalmente, depois da morte dos pais dela.
— Dê cá essa vassoura! Posso não ter me casado com uma bruxa, mas me acho enfeitiçado por ela. — Para Bob! Não me faça rir. Se eu perder o controle, acabo fazendo xixi nos lenções.
Robert riu contagiando a companheira, ela tanto riu e chorou. E o riso trouxe uma torrente de água salgada a escorrer no rosto... (e nas pernas).
— Eu avisei. Agora, com licença. Preciso trocar os lenções de cama.
Morgana assumiu um semblante sério.
— Prometeste não narrar no livro nossa lua-de-mel. Vai manter a palavra, não vai? — Claro. Vou falar só da lua de xixi.
O quarto explodiu em gargalhada e os lenções tiveram, novamente, que serem trocados.
Abriu as janelas A brisa suave da noite veio acariciar a pele macia da semideusa deitada a fio comprido sobre lençóis macios. Lá fora, as águas batiam forte nas pedras artificialmente colocadas, para conter a ressaca do mar. E a lua empenhava-se em mostrar a brancura das ondas desfeitas quebradas nas pedras.
Era noite do segundo dia. — Este jornal que lês é de ontem. Penso que podemos fazer algo melhor, disse Morgana, com ar de riso.
Robert estendeu a mão para desligar o abajur.
— Oh, não!... Tenho medo do escuro. — Logo virá a aurora dissipar teus medos. — Será Por que os medos se ocultam à luz do dia, e nos atormentam, assustadores na escuridão? — Para explicar os medos noturnos é preciso que estabeleçamos um paralelo entre sonho e pesadelo.
Morgana ficou curiosa.
— Podes explicar isso, sem tomar valioso tempo de nosso sono?
Pesadelo é a explosão de problemas reprimidos, que se manifestam em sonhos aflitivos. Quem nasceu no campo, sonha com boi querendo chifrá-lo. Quem mora na cidade, sonha com assalto. Isto é reflexo de seus medos que se transformam em pesadelo. Já o sonho tem um leque muito vasto de significados. Existem até vendedores de sonhos.
— Falavas sério. Agora, gracejas. Que estória é esta de vender sonhos? — Quem escreve livros. Vende sonhos.
Robert quebrou a concentração de Morgana, com uma gargalhada.
— Por que riste? — Lembrei-me de um verbete de Machado. — Qual? — ‘O sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. ’
Morgana que estava muito interessada em desvendar os mistérios do sonho e do pesadelo. Levou um susto. E assim que pôde falar, disse carinhosamente: “ Safadinho! Quase me sufocou com teus beijos.”
— Gostei do ‘safadinho’! Na variante linguística carioca, safadinho pode significar menino travesso. E fazer travessuras é muito bom! — Não me fale em Rio de Janeiro, me dá medo de bala perdida! — Durmamos de mãos dadas, a aurora não tarda chegar.
***
Adalbeto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
Imagem: olhares.sapo.pt.