 
Pensou em criar uma fantasia e dizer que tinha entrado no sonho dela. Diria que ouvira tudo. Tudo que ela falava enquanto dormia no sofá da sala.
— Que susto! Que horas chegaste, Robert?
— Quanto brigavas com um tal Saul. Por ter evocado o espírito de Samuel.
— Falei dormindo?
— Digamos que... Menti quando disse que não vi nada no quarto secreto. Secreto não é o mesmo que misterioso. Quero penetrar nos mistérios daquele quarto.
—Nunca vi nada.
— Para de me tapear, Ravenala. Conta logo, minha mãe já chegou. Logo me chamará e não teremos mais que cinco minutos.
Era tarde no relógio biológico das crianças — oito da noite. Noutros tempos, hora de criança dormir.
— Hasta luego.
— Até.
Com as horas adiantadas no calendário do relógio, Ravenala, tinha pouco tempo para suas divagações, até chegar o momento de ir para a escola. Então ela aproveitou o pouco que lhe restava: Sentou-se no sofá; e fez uma varredura procurando por alguma coisa que não conhecia ainda na casa, mas não havia nada novo sob aquele teto sem laje nem sobre o velho piso de mosaico. Lá fora, pássaros faziam algazarra na mangueira. Levantou-se e foi rever aqueles seres alados com os quais estabelecia contato quase que diariamente. Alguns repetiam a visita, duas ou três vezes no mesmo dia, outros desapareciam, ficavam semanas sem se apresentarem para o banquete.
Os galhos da velha mangueira abrigavam maracanãs e periquitos que derrubavam mangas maduras no piso cimentado. Ravenala ficava admirada com a beleza das cores. Periquitos multicoloridos, pintados de verde, amarelo e alguns com retalhos azulados. A menina sentou-se numa pedra. Enorme, se comparada àquela descrita por Robert como sendo o trono do sapo filósofo de dona Leide. A pedra estava aquecida à temperatura de aproximadamente, trinta e sete graus. E pulsava como se tivesse coração. ‘Pedra deve ter vida...’
— Chanana! Quantos anos vive uma pedra?
— Quanto tempo dura a vida de uma pedra, não sei. Penso que pedra não morre!
— Acho que morre! Se um caminhão esmagar uma pedra, ela morre.
— Não morre! Mesmo triturada em grãos, cada grão é uma pedra.
— Pedra tem vida, sim! E se tem vida, morre! Quando me sento numa pedra, sinto a pulsação dela.
— É a pulsação de seu corpo, pressionado sobre a pedra, menina!
— As pessoas deveriam ser como pedra... Quero ser uma pedra, menos o coração! Coração de pedra não é bom. Quero ser uma pedra que anda, vê, fala...tem um coração de carne e não morre. Não quero morrer!
— As pessoas não morrem! Cada uma que nasce, ganha uma estrela no céu e quando fica velhinha, vai morar lá.
— Então vovô mora numa estrela?
— Sim. E quando se zanga, manda raios e trovão.
— Ravenala, vem tomar café, pra ir pra escola!
— Hoje é sábado, vovó. Não tem aula...
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
Contato: adalbertolimapoetadedeus@gmail.com
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