As lembranças da fazenda Campo Grande ficaram gravadas nos anéis da memória de Corina: o casarão, o gado espalhado na pastagem, e a aurora chegando no leite mugido pelo vaqueiro na casinha de curral. Mineira de parto, gerada e crescida em Minas, quando morreu o marido, ela mudou-se para o Rio de Janeiro, com a filha Dulcineia, ainda nos cueiros. E Chanana, a índia tomada por adoção, logo que a mãe morreu de parto. A viúva do fazendeiro arrumou as malas de couro cru, pôs em cada bruaca boa medida de goma, farinha e carne seca. Vendeu tudo que tinha: porco, galo, pavão, peru e galinhas; cavalos, ovinos e todo o rebanho de gado vacum. Vendeu também por pouco dinheiro a coleção de livros que Generoso tinha, e a fazenda que cobria grande parte do chão banhado pelos rios Juramento e Saracura. Escondeu na matula o apurado, e tomou condução em Montes Claros para o Rio de Janeiro. Copacabana ainda era menina, e Corina sonhou verde. Foi morar na Tijuca, que lhe remonta lembranças de Campo Grande. Saudosas lembranças também tinha do coco que Zé cantava a Mirabela e de todas as coisas belas de Minas. Minas tem poeta, boa cachaça e muita gente famosa nascida naquele chão. Tem Drummond, João Guimarães, Tião Carreiro, e Zé Coco do Riachão. Foi em Minas que Generoso conquistou Corina, a glória que Vitória da Conquista da Bahia, não lhe ofereceu. Ela nunca esqueceu quando o marido perdeu a vida, numa encenação de campeio. Ninguém acreditou na versão de que o baiano sofreu acidente em um toco de aroeira. Aquilo foi rixa com confrontantes. Sumia galinha da fazenda e as frutas desapareciam da chácara. Também o leite sumia. A vaca que dormia de úbere cheio, acordava vazia. Poeta e fazendeiro, Generoso sentava na raiz que dá no córrego. Contava borboletas esvoaçantes, fazia poemas ao vento e pescava lambari no rio com o mesmo nome. Agora, o Lambari mostra pouca água. Também o Saracura pede socorro. Três-potes, que outrora cantava no gargalhar das águas. Chora. Lamenta. Implora por um copo d’água. Rio Verde, amarela, por causa da estiagem. Causos de onça não tem mais. Só a arrogância de Venâncio Dólmen persiste. Ele não gostava de perder. E Justino Generoso não voltava palavra atrás. Apostou tá apostado. Perdendo ou ganhando, tem que honrar a palavra. — Juro por minha vida — dizia Justino — meu candidato ganhou a eleição. — Tião não ganhou. Ele morreu antes — protestou Dólmen, esbravejando. — O nome que constava na cédula era de Tião — justifica Justino. Dólmen eleva o tom de voz. — Mas Tião já estava morto. — Apostei no candidato e no partido. Não aceito querela. Não quero demanda. Quero o boi casado na aposta. O resto, não importa. — Durão ganhou com cédula eleitoral de um falecido. — Então o falecido ganhou. Apostei que ele ganhava. Só não sabia que depois de morto. — Quem vai governar o município? — Durão. — Então Tião não ganhou. — Amigus Plato, magis amica Veritas. Venâncio Dólmen fez-se de entendido: ‘Doutor Justino Generoso me chama de amigo’ — Entrego o boi. Estou perdendo pouco. Perder pouco. Naquele caso, o que seria? Quem tem mais de cinquenta reprodutores, perder um pode significar perder pouco. Robert intervém. — Agora rompes a fronteira da realidade e te embrenhas numa ficção descabida. Mostrar um diálogo em Latim, no meio da pastagem... — Bobinho! A carta que meu avô escreveu, narrando o fato ao amigo, faz parte do processo que levou Dólmen para a cadeia. — Cruzes! Não sei se falas a verdade ou me tapeias. — O trabalho que faço, não requer apresentação de prova documental, ainda assim, eis aqui uma cópia da carta que meu avô endereçou ao Dr. Guimarães, datada e assinada. Robert leu: “...Ora Doutor, rasguei meu Latim, no meio do pasto: ‘Amigus Plato, magis amica Veritas.’ E o coronel Dolmênico se viu atarantado, tomou aquilo como se eu lhe houvesse estendido a mão de amigo, e entregou o boi, objeto da aposta. Em casa, eu ria, contava a Corina e acrescentava pitadas de humor... Naquela noite... naquela noite... Corina estava tão bonita! E me perguntou: ‘O Cravo nunca vai brigar com a Rosa, não é meu dengo?’ — ‘Nunca, minha Flor!’ Aí, o resto eu não conto, Doutor.” Robert meneou a cabeça. “ Quem conta um conto, aumenta um ponto.” Se é verdade que a saudade só se descortina, quando se tem uma boa lembrança. Boi sente saudade do pasto, dos campos verdes e do bem-te-vi a lhe catar carrapatos... — Penso que boi sente tristeza em ambiente tenso. Pesado. Cheirando a sangue. Ele sabe que vai morrer, e tem saudade de campo largo, campo grande, aberto ou fechado. É o fim da picada. Ali o boi solta seu último berro
enquanto o coveiro cava e escava de sete palmos a carne pende no varal e navega com Teixeira de Abreu em rodas da saudade.
Campo Grande jamais se esquecerá do coronel — dissera o padre, durante as exéquias — nem o tempo apagará sua memória. Sua humana alma sempre apartada da corrupção, seja ela na glória eterna coroada. Justino Batista foi um homem justo e generoso. Dólmen saiu calado. Apinajé chorou. Muita gente fungava, até homem chorava e tossia escorrendo água nos buracos das ventas. Sinhá Corina mandou servir chá de jasmim e cravo-de-defunto, e logo, correu o boato que o finado era santo. Mas... Na missa de corpo presente, o padre não comentou o milagre. O povo é que dizia, que doente ficou curado de mal respiratório, resfriado, bronquite, reumatismo, e depressão, depois de tomar o chá no velório de Batista Generoso. A própria viúva bebeu chá-de-jasmim, para controlar o baticum do coração, doído de paixão pelo marido e orava pela salvação da alma dele, visitando todo mês o corpo santificado de Justino, dado aos vermes em Sete Passagens. A índia Apinajé lastimava: ‘Coronel Generoso era bom demais da conta.’ Ela chorava mais que a viúva. E em sua mente revivia a cena de quando atrasava o almoço dos cafuçus e a boia chegava fria... Os homens do tijupá reparavam nela o cabelo assanhado, adornado de folha seca e sementes de mulungu. — Reparem o cabelo dela. — Bota maldade não, sor. Deve ser assim que índio se enfeita. — Nem não! Tem sangue de peru naquela pintainhada de perdiz. Mulo não gera filho. Onofre não é pai daqueles caburés. — Deixa Onofre sonhar... — Sonhar o quê, cabeça de vento? — Malquerença! Botando intimidade da mulher do vaqueiro com o patrão. Ninguém nunca viu nada. — Essas ‘coisa’ num é feita pra ninguém ver... Repare as crias. A índia tem filho branco, quase sarará. A mais nova é ruiva e vermelha que nem o patrão da mãe. Nariz curto... achatado. Branquela. Onofre é tico-tico a cuidar de cria alheia... — Nem que não seja sangue de seu sangue. Criou. Toma feição. — Entre troncos e brenhas, ninguém sabe onde a lenha queima. A menina tem jeito e sabedoria demais para ser filha de vaqueiro. — Respeite o sentimento da família. O homem já morreu! — Tô falando quando era vivo. — Ela tem filho caburé de cabelo corrido. Que é próprio da mistura de negro com índio — interfere Xandão — Isso sinaliza que Onofre é o pai. E se não for, não nos cabe julgar. Dizer que a índia é trabalhadeira, ninguém diz. Mas ficar de olho no caminho para ver se ela já vem trazendo a boia, todo mundo faz. — Todo mundo é muita gente... Eu nunca reparei os modos dela com o patrão. Só tenho olho pra minha enxada e a leira. — Tá na hora de pegar no pesado — disse Pai Luís. — Nem amolei minha ferramenta, ainda. — A gente a mola ferramenta é na hora do descanso. — Pai Luís tá certo. Já em pé, Gaudêncio bateu com o olho da enxada numa pedra. Raivoso. — Apinajé! Nome besta sor. Nunca vi este nome... — Acaso tinha visto índio antes, nessa sua vida besta de enxadeiro? — Nem nunca! — Ontonce. — E o milagre? — Sei de milagre não. — Índio conhece o poder das plantas medicinais, mais do que ninguém — disse João Velho — é por isso que está cheio de estrangeiro, misturado com índio nas matas do Brasil. A erva é levada daqui. Depois volta embalada em comprimidos, e são vendidos para nós, pelo preço da hora da morte.
*** Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
Contato com o autor: adalbertolimapoetadedeus@gmail.com