O diabo é pai do rock, mas nem todo rock é diabólico. Tudo vai depender dos frutos que esse ritmo musical produz na mente e no espírito de quem o ouve. Alguns músicos fazem pacto com o diabo, para obter sucesso e fama, consagrando suas músicas ao demônio, essas sim, são diabólicas, porque consagradas ao diabo. No entanto, o rock, como ferramenta do mal, praticamente, passou, como passa também a moda; até as palavras saem de uso e dão lugar a outras. Tudo tem seu tempo, agora é o tempo do funk que chega com mais forças e poder maléfico do que o rock. A música é boa, se der bons frutos. Ela pode auxiliar na cura do estresse, ansiedade e depressão. No entanto, é preciso selecionar o que se ouve. — Noivas escolhem o Tema de Lara como ‘Marcha nupcial.’ Dr. Jivago compôs aquela música para sua amante. Posso imaginar de onde veio a inspiração. Sabiamente, Santo Agostinho disse: ‘os ouvidos e os olhos amam a beleza e a variedade dos sons e das cores. Mas não permita que tais atrativos acorrentem tua a alma’. — Cadê padre Davi. Pergunta Ravenala ao pai. — Já foi. Sob o pretexto de buscar a filha, Martiniano de Castro comparece no final da festa, na certeza de que Chanana também estaria lá. Cumprimenta a aniversariante. — Parabéns! E boas energias para você, mocinha. — Obrigada! Só não lido com energias. Sou movida pelo sopro divino. — Que o Arquiteto do Universo guie seus passos. — Sua bênção tem sombra de maldição. O Arquiteto do Universo não é o meu Deus. — Não considere o que diz essa menina. Ela está em sua fase de rebeldia, atalhou o pai. Que vem fazer aqui, esse bode velho, por que não mandou Androceu buscar a Morgana? — pensou. A presença desagradável do bicheiro a fez olhar noutra direção. Ali também estava Androceu, gordo e rosado como porco duroc.Chanana apareceu exibindo estilo e classe na beleza das vestes. Martiniano fixou-a demoradamente; Androceu baixou as vistas, recordando-se dos boatos que corriam no bar do Portuga: ‘ Dizem que o Bode Velho, depois que mandou castrar o motorista, mesmo tomando comprimidos para estimular a libido, nunca mais procurou mulher... A hora avança. Jeremias puxa a manga da camisa e confere os ponteiros do relógio. Os convidados entenderam o recado e se retiram, um a um... Novamente ela estava só. Sozinha, Ravenala viajava no silêncio supersônico de sua imaginação. Ela ouviu parte da conversa do padre e entendeu perfeitamente o ar de desagrado daquele sacerdote em relação ao presente de aniversário que Ramayana trouxera, até por que, o assunto tinha sido matéria da aula de religião na semana passada: músicas de inspiração diabólica... Ela, Ravenala, não escreveria nenhum capítulo sobre funk. Falar mal de futebol, carnaval e funk no Brasil, é colocar uma corda no pescoço e os pés no cadafalso; cair no esquecimento ou ter seu livro jogado na lixeira, como as páginas policiais do jornal de Robert. Muitos querem ver a beleza das cores, que passam pelo sambódromo, outros que o carro alegórico estoure e os foliões voem aos pedaços pelos ares. É como nas corridas de Fórmula 1, enquanto alguns aplaudem o piloto, outros torcem para que ele se esborrache em acidente espetacular contra o paredão. Cada um tem seu conceito. Alguns, inclinados para a morte, outros para a vida. Ravenala não gostava do conceito de opinião formadas pelos outros. Tinha seus próprios conceitos sobre o Bem e sobre o Mal. Tinha consciência da coisa de seus desejos, e, aos poucos, sentia-se imaculada, como nos primeiros dias de Eva no paraíso. Refez os conceitos de céu e inferno: ‘Somos cavaleiros na Terra em marcha para o Céu. Escrevemos aqui os primeiros capítulos da vida e os demais, eternamente infinitos, continuarão a ser escritos no céu. Lá a história nunca termina. Não há noites nem trevas, tudo é muito claro. A aurora nunca acaba, e o sol se põe muitas vezes por dia. No céu não há noite nem trevas.’ E ficava imaginando. ‘Será que seu Jeremias também conversa com o Acendedor de Lampião? Nunca o vira entrar no quarto secreto. Ah, por certo, o pai também nunca vira ela entrar lá.’ Abriu a janela. Sobre a escrivaninha, um livro embrulhado. Retirou o papel e leu o testemunho de Erich Daniel, jovem ocidental dos anos oitenta.
...Depressa!...Um fliper livre. Depois de jogar por um bom momento, levanta os olhos e descobre quem é o parceiro: um diabo verde. Objetivo: atropelar o maior número possível de pedestres ao volante de uma supermáquina. A cada pedestre atropelado, um som fantástico, anuncia o triunfo: ‘Eu mato crianças’. [1] Escutou passos. Chanana chegava com uma vassoura, rodo e desinfetante. — Posso entrar? — Espere um pouco. Fechou o livro. Guardou-o numa gaveta, e puxou a maçaneta da porta: — Entre... — Está atrasada para a escola. — Não vai arrumar primeiro o quarto? — Depois que você sair. Eram sete horas de uma manhã quente no Rio de Janeiro. Gigantesca fila de veículos para no sinal, pela fresta da janela semiaberta, ergue-se um polegar. — Olá, como vai! Quanto tempo! — Pois é. Desde a época na fábrica de celulose em Recife! — Até mais vê-lo! — Até mais, Valença! A menina do sinal apressa-se. Esfrega a esponja, depois puxa a água com um pequeno rodo. Enxuga os vidros. A mão lhe estende uma cédula de cinco cruzeiros. — Agradecida, seu Paulo. O sinal verde. Motoristas arrancam os veículos, simultaneamente. Vannini acena. Ravenala fica triste. Aquela menina deve ser da sua idade. Muitas crianças não estudam porque os mandarins guardam o dinheiro da Educação em seus bolsos rotos. Quebram limites e barreiras, vencem obstáculos, e burlam a Lei. Com asas negras sobrevoam, impunes, o abismo de seus crimes. Maquinam o mal e só o mal fazem ao semelhante
[1] Daniel – Ange; o pastor ferido. Librairie Artheme Fayard 1986. Tradução Maria Emir Nogueira; Shalom 1997.