A caverna úmida e sombria, não lhes ofereceu o repouso desejado. Quente e úmida, exalava o cheiro de fungos nos estercos de morcego. Por certo ali, ela não teria por distração com seu pequeno príncipe mais que a beleza do pôr do sol. Levantaram atraídos por uma luz tênue que entrava, acanhadamente, pela grande abertura do primeiro salão. — Bom dia! — Bom dia! — Como me faz bem essa saudação! — Esse cumprimento matinal, tão benfazejo caiu em desuno na modernidade. — A tradição tem perdido forças na vida do homem moderno. Isso não é bom. Tudo começa com o distanciamento, frieza mórbida: indiferença. Afastamo-nos do semelhante, e, gradativamente, de nós mesmos. — Vamos descer à cata de nosso desjejum. — Não sinto fome! — Precisas se alimentar. Digo, os dois precisam. A maré subiu. — O cansaço nos colocou sob o risco de morte. — Como assim, Ravenala? — A maré...Se a águas bloquearem a porta? Quero dizer, a entrada da caverna. Porta é modo de falar de uma passagem que pode nos levar a um caminho sem volta. — Estamos em um ponto algo. A água não chega até aqui. — E oxigênio? — Há muitas frestas entre as rochas. Tive o cuidado de verificar isso ontem, enquanto tínhamos a luz do dia. — Tenho um marido quase perfeito. Sorriu docemente, enquanto procuravam alimento. — Cuidado com as pedras soltas, disse ela. — Passe! Vá em minha frente. Não tinham relógio para pontilhar as horas. Mas, pela intensidade do sol e o cansaço que sentiam... Era hora de almoço. Gritos ensurdecedores ressoaram na mata. Macacos fugiam assustados, um porém, audacioso, manteve-se quieto, degustando uma fruta vermelha, de agradável sabor aos olhos. — Se macaco come, também podemos comer. Façamos a festa. — Pode ter certeza, vou comer por mim e por Robert. Ravenala não quis mais se referir ao filho chamando-o de Bob. Percebera que Daniel...Bem. Nunca se sabe! O Coração do homem é mistério insondável. Daquele ponto, a vista panorâmica revelava os mimos de Deus. Lá em baixo, o mar azul da cor do céu e no platô, a exuberante natureza oferece alimento em abundância. Exploraram a mata, banharam-se numa lagoa de água límpida e cristalina. Mar, doce mar! Tão azul quando os olhos de Morgana. — Pensou. — Os olhos de Morgana são verdes, Dan! — Agora sondas meu pensamento? — Sexto sentido, meu amor! Não minta! — Sim, o mar me traz recordações: boas e más. — Em qual delas se situa Morgana? — No azul infinito do mar: perto de meus olhos e longe do coração. — São verdes os olhos da Morga. — A cor não faz diferença. O brilho sim, transmite energia. Teus olhos sempre serão estrelas a guiar meus passos. — Obrigada.Como fica forte uma pessoa quando está segura de ser amada — Bem gostaria de ter dito isso, antes de Freud. — Disseste depois. Vale o mesmo:Podemos nos defender de um ataque, mas somos indefesos a um elogio. Ravenala uniu as mãos em concha, apanhou água doce e deixou escorrer lentamente sobre barriga. — ‘Deus te abençoes, meu pequeno príncipe! Te amo muito.’ O bebê se mexeu. Emocionada, ela chorou e sentiu que as lágrimas lavavam sua alma, animando também aquele ser tão pequeno, guardado em suas entranhas há meses. E desculpou-se por não saber o dia exato da concepção. Tentou explicar, até mesmo como forma de aliviar o próprio sentimento de culpa: ‘Os náufragos perdem a noção do tempo. Daniel a observava a meia distância. E volta a dialogar com sua mente: ‘Nem ao menos tentei desvendar os mistérios do coração de Morgana. Convivi com ela e não a conheci. Pode-se amar aquilo que não se conhece?’ E se perguntava: ‘Por que não tive intimidade com a Morga? Para ele, ela fora sempre Morgana, a filha de um bicheiro rico. E, mesmo casado com ela, nunca fez parte de sua vida. Talvez o dinheiro...o dinheiro mal ganhado do pai de Morgana tenha sido a barreira que ele nunca superou — ‘Que culpa têm os filhos pelos crimes de seus pais? Quem chupa uva verde é que fica com os dentes desbotados.’ Enquanto pensava, Daniel tecia palhas de uma palmeira cujo nome ele não sabia. Ravenala saiu da água. — Que é isso? parece uma sacola! — Falta ainda atar a uma vara. Espere só eu terminar. Talvez dispense explicação. — Vais caçar borboleta, Daniel? Nada além de frutas comemos hoje, e tu vais caçar borboletas?... — Nada disso, bobinha! Vou capturar peixes. O segundo salão tem mais de cem deles. — Nunca! Contei todos. — São 153 peixes cada um de espécie diferente. — Deve ser a futura arca de Noé. — Estás delirando? Noé construiu sua arca e pôs nela animais terrestres. Não precisou preservar os que vivem na água, afinal, foram quarenta dias e quarenta noite de chuva. — Exatamente por isso. Não haverá mais dilúvio. Aquele salão contendo diferentes espécies de peixes é a próxima arca de Noé, para salvar os animais aquáticos do fogo. Não reparaste como a temperatura da caverna... — Sei não! Melhor juntarmos gravetos para fazer fogo. — Aqui em cima? — Não, vamos descer. — Então juntemos lenha lá. Não aqui! — Foi isso que eu quis dizer.
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Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
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