A seca de 57 repete a fome de 32 na imagem do céu rendado de nuvens brancas. Fome e seca, mas na casa do coronel Generoso tinha fartura. A despensa cheia, guardava mantimento nos tonéis de zinco. E na cozinha, flocos enegrecidos de picumã desciam do teto, confundindo-se com a linguiça que defumava na fuligem do fogão de lenha. — Venha ver, senhora! O terreiro está coalhado de gente! — Abata três galinhas e dois frangos. Faça um tacho de arroz, disse Corina. — E feijão? — Pobre não gosta de feijão. Faça pirão, maxixe e quiabo. Cozinhe um caldeirão de nabo. Saco vazio não segura em pé. Fazer comida para mais de trinta pessoas era serviço demais para uma só. — Nhá Santa... Nhá Santa... — Peraí, tô rezando... A cozinha se movimenta. Cuidadosamente, Euzébia retira a penugem dos frangos. Corina cuida do maxixe. Nhá Santa lava o quiabo picado, e põe limão. A panela baba. A chaminé respira cheiro de sementinha de coentro verde, alho e sal socados no pilão. Nhá arruma a mesa grande. Doze talhares postos. E doze cadeiras acomodam os convivas. Depois mais doze se sentam à mesa e se revezam. Mais doze, enfim, se fartam. Os meninos comem na cozinha, e os grandes que são cria da casa, sentados no chão, recebem a boia em prato esmaltado. É hora da procissão. Peregrinos tomam a estrada. E se vão. Rezam. Cantam. Suplicam. E voltam molhados. Pingos miúdos caem no telhado, correndo e escorrendo nas cabecinhas dos pirralhos nus, que dançam na chuva. Viúvas da seca entoam canto de lamentação e mães choram seus filhos ausentes. Paulista de Taubaté nascido, Alexandre Guedes puxa a reza e se recorda das Aves-cheia-de-graça que dizia, no colo da mãe, quando criança. O sino toca. Mulheres cantam hinos, invocando os santos de devoção. Guedes, intercede, pedindo que se abram os reservatórios do céu sobre o sertão Norte mineiro. Era dia de São José. Fiéis, ajoelhados pedem chuva. Despejam sobre a cruz da Santa Catarina as garrafas de água que levaram. Vaqueiro Alexandre Guedes Xandão se inclinou até o chão, pôs a cabeça entre os joelhos e disse a João Velho: “Vá e olhe para o lado das Sete Passagens.” O ajudante foi e voltou dizendo: “Não vi nada.” Sete vezes Xandão mandou que ele fosse olhar. Na sétima vez, o ajudante voltou e disse: “Eu vi subindo da serra uma nuvem pequena, do tamanho da mão de um homem, como nos tempos de Elias.” O céu dá sinal que ouviu as preces penitentes daquela gente sofrida. Ouviu-se uma voz do céu como o ribombar de potente trovão. A multidão fez silêncio para ouvir a voz de Deus. A procissão de desfaz. Lágrimas de agradecimento se misturavam às gotas miúdas caídas do céu. Os fiéis retomam a estrada e caminham cerca de duas léguas de volta pra casa. — Quem é o anjo gordo que puxou a reza? — Quis saber Corina. — Gordo, careca e sem asas é o Xandão; chegado de Taubaté e contratado, recentemente, como vaqueiro da fazenda Campo Grande. — É casado? — É. Mas a mulher não acompanha. — Que pena, um homem tão bom!
*** Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.