O ATIVO DA ARANHA
Num final de semana de céu nublado, seu Amarindo subia as ladeiras de Conceição de Ibitipoca, as mesmas ladeiras que fizeram fortes os seus músculos de quase oitenta anos. Durante sua infância corria por elas, para cima e para baixo, no ritmo de uma criança feliz, e privilegiado que era por ter em sua terra uma natureza de montes verdes e cachoeiras de água cor-de-ferro do Parque Estadual de Ibitipoca.
Em função das demandas da vida, abandonou sua cidade infantil aos dezenove anos e foi para Belo Horizonte tentar a vida. Arrumou um emprego numa empresa de mineração e fez sua vida respirando o pólen ferroso das crateras. Casou-se com uma moça de Ouro Preto, chamada Carmen, costureira hábil, e mulher de fibra. Aprendeu também a ganhar dinheiro com pedras preciosas e, astutamente, construiu sua vida, proporcionando uma existência materialmente confortável à sua prole. E nas ruas da cidade histórica passou a maior parte de seus dias, descendo e subindo as ladeiras cobertas por pedras gigantes, apostas ao local pelos escravos na época áurea do ouro das Minas Gerais.
O tempo é o engenho do silêncio, pois passa sem ser percebido, condenando os desatentos à penúria de não ter vivido e visto o que poderiam ter vivido e visto no único momento oportuno de cada dia. Seu Amarindo não percebeu e o tempo passou. Por anos pensou em voltar para a sua pequena vila de travessuras, mas a rotina de seus dias e os encargos familiares não lhe permitiram, afora seu medo de viajar sozinho.
Seu Amarindo era daqueles tementes à solidão das viagens. Viajar para ele era perigoso. Ultrapassar as construções históricas poderia lhe custar muito. “Viajar pra quê? Se tenho aqui tudo o que preciso pra viver”—pensava ele. Mas a vontade de voltar ao seu lugar não terminou. Disse certa vez a seu filho:
— Jorge, quero você me leve pra Ibitipoca antes de minha partida desta vida.
— Só espero a tua decisão, pai. O senhor fala a mesma coisa desde que nasci. Vamos no próximo domingo?
— No próximo não posso. Tenho que acompanhar o trabalho do pedreiro lá em casa.
— Pai, o senhor sempre inventou uma desculpa para não viajar! Essa é última vez que te convido. Se não for dessa vez, não vou te chamar mais! Domingo que vem te pego em casa às seis da manhã. E não retruque! Me obedeça! — brincou Jorge com seu pai, abraçando-o, enquanto sorria para seu genitor.
Cinco dias depois...
— Bom dia Pai! O senhor está pronto?
— Só um minuto, filho. Preciso pegar minha câmera fotografica. Quero tirar algumas fotos nos meus lugares preferidos. Quando chegar em casa vou comparar as fotos com as que ainda tenho da época em que lá vivi. Acho que explorar a nossa nostalgia nos faz olhar pro passado e revivê-lo com o poder renovador de nossa memória.
Viajaram por cerca de cinco horas. Jorge se manteve atento à direção de seu veículo. Já o pai conversava com o filho enquanto contemplava a paisagem verde-montanhosa das curvas mineiras.
Chegando à cidade, os dois estacionaram o carro na frente da pequena igreja do distrito de Lima Duarte. Seu Amarindo a olhou de cima abaixo e percebeu que os contornos artísticos eram os mesmos. As ruas já não eram mais de chão batido; agora, eram calçadas. Muitas casas e hotéis haviam sido construídos. A pequena vila de sua infancia se rendera à indústria do turismo. Tentou correr pelas ladeiras, como fazia em sua infância, mas suas pernas já não eram as mesmas. E teve que caminhar, lenta e pacatamente — uma experiencia que não teve enquanto ali vivia, posto que a energia da juventude lhe exigia que corresse, e corrosse, e corresse.
Nas proximidades da Igreja haviam construído uma associação de moradores. Ao subir as escadas da associação, deparou-se com fezes humanas no quinto degrau. Nos próximos degrais arriba havia latinhas de refrigerante, bingas de cigarro, papéis de bala e muitas folhas secas. A paisagem era de abandono e descaso com o lugar.
Contudo, em seu tratando de abandono, não há sinal mais claro e resoluto dele do que a presença numerosa de aranhas. E elas eram muitas, de diversos tamanhos, cores, tribos, espécies e venenos. Seu Amarindo percebeu que, de fato, aquela associação era bem eclética e voltada à diversidade democrática que era inerente à sociedade aracnídea. Passou a olhar as paredes uma a uma. Ao lado da maior janela do prédio, no canto superior de uma larga coluna de concreto, estava a maior e mais bela delas. Seu nome era Displicência. Encorpada e forte, era dotada de um abdómen negro-amarelado, e cefalotórax tingido pelas mesmas cores em um formato retangular.
Seu Amarindo a olhou nos olhos para se certificar se estava acordada. E ela lhe saudou com um educado “— Bom dia, meu senhor! Em que posso ajudá-lo?”. E o ex-morador respondeu com a mesma polidez e educação: — Bom dia mimha senhora!
Ambos tiveram uma boa sintonia inicial. Seu Amarindo não lhe fez nenhuma pergunta. Preferiu observá-la primeiro antes de correr o risco de ferir suscetibilidades. Ao parar para observá-la, ateve-se inicialmente à sua beleza, que era notável e exuberante. Retirou seus óculos, pegou seu paninho de veludo e limpou as lentes, pois assim poderia explorar melhor a beleza da senhorita Displicência.
Depois de observá-la por alguns minutos, perguntou-lhe:
— Peço que não se sinta ofendida com a pergunta, mas por que se chama Displicência?
Calmamente, a aranha respondeu:
— Na verdade, não sou displicente, mas sim a acompanhante mais fiel da displicência. Quando ela entra em algum lugar, eu venho logo atrás, porque sou sua sombra. Não sou uma aranha displicente. Sou, tão somente, a sombra da displicencia, já que sigo seus passos, já que não me desgrudo dela. Ela é o corpo. Eu sou sombra. Não obstante, eu só apareço quando o sol do abandono sobre ela incide seus raios. Na verdade, recebi o nome do corpo que molda o meu formato.
Seu Amarindo voltou novamente seus olhos para a associação de moradores, ou melhor,de moradoras. Concluiu que ali se encontrava se reunida toda a representação da sociedade aracnídea de Conceição do Ibitipoca. Os homens a abandonaram, e as aranhas, com sua astúcia e sagacidade, ocuparam-na, construindo ali um órgão de representação de classe muito bem organizado e diversificado, uma sociedade de dar inveja a qualquer político oportunista.
Começou a observar também a sua teia da Displicência, a qual tinha um perfeição geométrica de dar inveja ao melhor dos arquitetos. Seus retângulos concêntricos eram feitos com zelo e adornados com o perfeccionismo espontâneo da natureza. No canto de sua teia descansava tranquila. Ali ficava seu casulo, um cantinho que lhe dava proteção e um certo conforto, já que suas paredes de seda aracnídea eram mais espessas do que o seu quintal de retângulos concêntricos.
Sua estrutura é similar à de uma fazenda: na casa reside o lavrador; no quintal, as hortas que lhe dão o sustento. O casulo dá proteção e segurança à aranha; enquanto a teia lhe garante o sustento. O lavrador trabalha e planta as sementes. Daí vem o tempo, a chuva, o sol, e o vento e lhe presenteiam com os alimentos. Da mesma forma, o faz a aranha: constrói sua teia, daí vem o tempo, o sol, a chuva e o vento, e lhe presenteia com várias moscas e insetos aprisionados por sua engenhosa e flexível estrutura de captura. A ela só resta sair do casulo e desfrutar da comida. Ao lavrador, só lhe resta colher os frutos das sementes que plantou. Ambos sobrevivem do trabalho árduo e cuidadoso. A terra, o ativo do lavrador. As pedras preciosas, o ativo do senhor Amarindo.
Já a teia ...
... o ativo da aranha.
Por Leandro Tavares
Rio de Janeiro, 06 de março de 2017.
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