
Adilson volveu os olhos noutra direção, divagando traquinagens da meninice: o banho guardado na bacia do açude construído com toras de aroeira, por mãos escravas. E as matas ribeirinhas do rio Juramento, onde se escondia com Jerônimo, para ver as meninas se banhando.
Naquele tempo, as meninas nadavam de roupa no rio, ainda assim, dava para ver a protuberância rosada de pequenos caroços de pitomba, que se delineavam ao contato com as vestes molhadas, promessa de que, na volta da próxima estação chuvosa, se transformariam em lindos seios e nunca mais poderiam ser vistos por eles, a não ser por aquele que desposasse uma delas.
Nhô Velho passa apressado, montado a cavalo, puxando Xerém que leva uma carga de rapadura para entregar na bodega de Nelson. Distraidamente, doutor Adilson comenta, aquilo que antes estava apenas em suas lembranças.
— Euzébia era a mais bonita! Homem de sorte, João Velho!
— Era? Faz quanto tempo que conheces Euzébia — perguntou Angélica.
— Desde menina. Naquele tempo já revelava alguma queda por João. Nunca descobri se ela tem olhos verdes ou amarelos.
— A roupa que a mulher veste interfere na cor de seus olhos — disse Angélica. — Euzébia tem olhos gateados. Mas de vestes verdes, tem olhos verdes...
Angélica fez um muxoxo e continuou.
— Não creio que João Velho seja um homem de muita sorte.
— Ciúme, minha rainha? Raul Soares não gerou, nem as águas do Santana ou do Matipó conceberam e jamais conceberão uma filha que se assemelhe a ti, em beleza, sabedoria e santidade. Eu estava pensando nas meninas que se banhavam no rio Saracura e Juramento. Coisa de menino...
— Não queira ser engraçado, Adilson! Falo dos homens que morreram porque se apaixonaram por Euzébia. Dois, que eu saiba.
— Nunca soube de nenhuma viuvez dela. Duas vezes viúva?
— Não chegavam a coabitar. Morriam na mesma noite do casamento, antes da consumação do ato.
— Então o casamento não valeu. Nenhum dos dois...
— Não! Não valeu. Ela permanecia virgem.
— Isso parece maldição! Como João Velho saiu-se com vida?
— Puseram-se em oração durante os primeiros três dias de casados, sem coabitar. João Velho conviveu com padres. Conhece a Bíblia. Por certo debruçou-se com Euzébia na leitura e prática do livro de Tobias.
— Angélica! Não convivestes com eles. Sabes muito de João Velho e Euzébia...
— Muita gente sabe da história de amor que eles viveram.
— Não vivem mais?
— Não sei! Não convivo com eles!
— Disso eu sei.
E chamou Jerônimo que veio trazendo a conta.
— Mais uma farofa de Tatu, por favor!
— Haverá um dia em que será proibido matar animais selvagens.
— Será, dona Angélica?
— Acho que Deus criou animais domésticos. Os que fugiram da convivência com o homem é que se tornaram selvagens — Arrematou Adilson.
— Também deve ter sido do mesmo modo com os humanos: os que fugiram da presença de Deus se tornaram selvagens.
— É por isso que existe índio, dona Angélica?
— Não! É por isso que existem pecadores!
— Diria que os que se isolam da convivência com o semelhante, tornam-se selvagens — interveio Adilson.
— Meu lindo! Estamos examinando a mesma matéria, sob a luz de duas ciências, que apontam para o mesmo fim: o poder criador de Deus. Ele que gera o conhecimento pela fé, é também o autor da ciência. Embora por caminhos diferentes, a ciência e a fé levam a Deus.
Jerônimo não entendeu.
— Com licença! Tem freguês me esperando no balcão!
— Vá! Depois traga a conta. Tá formando pra chover.
***
Adalberto Lima - fragmentos de Estrada sem fim...
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