
Desejou que a onça tivesse comido José Lino e, de barriga cheia, deixasse o pai, passar livremente. Mas se ela fosse escolher entre a presa morta e a viva, com certeza, escolherá a viva. E a viva era ele. Cachorro Vintém latia perto, mas aquele cão não era de confiança. Acua qualquer preá como se fosse bicho grande e tem medo de rato. Se pelo menos Graudez tivesse vindo... Escalou devagar, dando voltas em espiral. Sentou-se na barriga do morro, e viu Vintém trazendo um veado, suspenso pelo cangote. ‘Comida, comida...’ dizia o cão abanando o rabo. O dono não lhe pareceu agradecido. Esforçou-se para se levantar apoiado na forquilha. Gemeu, pôs a mão na clavícula, apalpou uma protuberância no ombro, semelhante a um limão implantado debaixo da pele. Embraveceu, olhou para o cão com ira: ‘Seu pulguento! Pra que matou o veado? Se deixasse a caça para a onça, ela poderia poupar nossas vidas. Não percebe que a morte ronda nossas cabeças, seu filho de uma cadela! Veja o que você fez? Perdemos a oportunidade de negociar com a pintada. Fora Vintém!’
Vintém sentiu-se na pele de Esaú, apanhando no campo uma caça para Isaac, e a bênção de agradecimento do pai, recaindo sobre Jacó. Com certeza Graudez ficará na história. Será pai de grande nação, e seu nome lembrado, geração após geração. E Vintém? Vintém, não passará de um cão peludo a mendigar um prato de comida.
Vintém a calmou-se.
Longe dele a ideia de guerra contra seu irmão gêmeo. Sabia que a disputa de poder entre os gêmeos, vem desde o ventre da mãe, mas ele não queria dar sequência ao conflito, por isso, em passado recente, cedera aos caprichos de Graudez, deixando-o possuir Corvina, a cadela mais bonita de Campo Grande. A ambição do irmão, no entanto, tomou também para si o amor de Cravina, e ambas lhe deram filhos e filhas. Enquanto pensava essas coisas, Vintém depositou sua oferenda aos pés do seu senhor, como vítima de propiciação pelos pecados de todos os cães abandonados, maltratados e famintos, que habitam a face da terra. Baixou a cauda e afastou-se lentamente. João Velho olhava aquela criatura tão pequena, descendo o despenhadeiro. Agora estavam apartados. Ele no alto, e Vintém lá em baixo, talvez, aprisionado numa voçoroca. Pobre cão, desprezado até no nome: Vintém. Vintém não passava na peneira das fêmeas, nenhuma cadela, jamais se apaixonou por ele! Por certo, não deixará posteridade.
Arrependeu-se. Em vez de afago, disparara dardos venenosos contra aquele que poderia ajudá-lo a voltar para casa. E se a onça matar Vintém? Só pele e osso, para que uma onça quer aquele traste? Nem carne tem! Tentação do diacho... Bicho mau, a onça. Animal matando animal... matando gente! Será que os bichos vão para o céu? Agonizante, Baleia sonhava com um mundo de preás gordos. Enormes!... Estaria ela no céu? E Fabiano? Viveu a miséria da pobreza e da fome. Pode ter tido a sorte de ir pelo menos para o purgatório. Direto para o céu é difícil! Melhor purgatório do que inferno. Quem está no purgatório, só sai de lá para o céu. Até as borboletas entregam seu espírito de borboleta ao Criador. Baleia entregou o seu. João Velho estava prestes também a fazer sua entrega. Se existe inferno, deve estar cheio de onça, leão, e esses bichos todos que matam com brutalidade. O animal foi criado para servir, não para ser servido! Sem dúvida, Vintém é um desafortunado, por isso, mata camundongos como se fossem preás. Ou, amedrontado, foge de rato pensando que é canguru. Também o homem mata. Muitas vezes, o homem mata sem derramar sangue. Mata com o veneno da tinta que suja o papel em forma de Lei, ou mata em seu coração. Corta relacionamentos e age indiferente com seu semelhante... Vintém é bom. Para os bichos bons, deve haver um lugar no céu. Mas como saber se o lobo é mau ou é bom? A onça que matou José Lino é má. E pode voltar para matar o pai de sua presa. Se ela comeu o cabrito volta para comer também bode.
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Adalberto Lima - trecho de estrada sem fim.
Imagem: Internet
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