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 | Contos-->MULHER INVISÍVEL -- 17/04/2016 - 17:06 (JOSÉ RICARDO ZANI  ) |  |  |  |  |  |
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 - Eu sei, não fiz o que você esperava de mim. Causei 
 
 decepções... Mas tem uma coisa que você precisa 
 
 saber, diz o nedex(*).
 
 - Fala logo!
 
 - Olhe ao seu redor. Aqui nesta cidade, no meio de 
 
 milhares ou milhões de pessoas, eu sou o único que te 
 
 enxerga, explica o homem.
 
 - Ah, tá. Agora sou a mulher invisível!
 
 - É... Para eles, você é praticamente invisível. Mesmo 
 
 que suba no mastro daquele Pavilhão, continuará quase 
 
 invisível...
 
 - Eu mereço...
 
 - Eles só enxergam um pedaço de você.
 
 - É o seguinte: eu não estou bem, e daí? O que uma coisa com tem a 
 
 ver com a outra?
 
 - Se ninguém te enxerga, não tem como você se 
 
 sentir bem... É como estar isolada o tempo todo, mesmo 
 
 cercada de conhecidos, arremata ele.
 
 Certamente, a intenção dele era reerguer o 
 
 relacionamento. Queria dialogar, procurava exprimir um 
 
 sentimento, mas não se deu bem. A conversa ficou
 
 no ar e nunca terminou. O relacionamento, sim.
 
 O que tentava dizer? O que havia por trás desse diálogo 
 
 estéril?
 
 Quem conhece sua história e suas razões acredita que 
 
 o episódio poderia ter seguido outro rumo. A conversa 
 
 teria fim, o relacionamento não.
 
 Se ele conhecesse o caso do índio, um simples exemplo 
 
 talvez o ajudasse, porque a fábula demonstra o que 
 
 ele insinua. E contraria o que ela supõe.
 
 O caso foi assim. Percorrendo Roma durante excursão 
 
 de um grupo composto por diversas etnias 
 
 sul-americanas, um cacique parou diante do Coliseu e 
 
 lá ficou por longos minutos, olhando para o monumento.
 
 Ao vê-lo ali, com a testa franzida e olhar indignado, o guia 
 
 quis saber:
 
 - O que foi? O que está olhando? perguntou o guia.
 
 - Muralha velha, caindo... Por que não consertar?
 
 Imagine como deve ser difícil, para um índio, enxergar 
 
 no Coliseu outra coisa senão um uma construção velha, 
 
 inútil, aos pedaços.
 
 O comentário do índio faz sentido, mas é limitado por 
 
 uma visão fragmentada, talvez oposta à dos estudiosos 
 
 e pesquisadores.
 
 Estes, quando olham para a mesma “muralha”, com 
 
 certeza enxergam algo que transcende o objeto que os 
 
 olhos alcançam. Estão enxergando uma dimensão 
 
 infinitamente maior. Eles têm clara noção de como aquilo
 
 começou, estão vendo ali muitos capítulos da civilização 
 
 e refletindo sobre 2.000 anos de história por trás da 
 
 construção! Vislumbram a grandiosidade de um império 
 
 e admiram uma das maravilhas do mundo.
 
 Sabem que estão diante de um patrimônio da 
 
 humanidade.
 
 Em outras situações acontece algo semelhante. O olhar 
 
 de pai e mãe, por exemplo. Eles enxergam no filho muito 
 
 mais do que uma imagem congelada. 
 
 Paulo é um filho com 25 anos, forte, independente. 
 
 Entretanto, na visão dos pais, que é moldada por uma ótica 
 
 exclusiva, a figura do filho contém a mixagem de 
 
 muitas fases da vida, em que se misturam a criança 
 
 frágil, que chegou ao mundo sob sua guarda 
 
 e dependente de seus cuidados. Essa visão alcança 
 
 a era de seus gemidos, o primeiro sorriso, os primeiros 
 
 passos, o crescimento e as principais conquistas... 
 
 Tudo estará intacto na alma dos pais, mesmo no dia
 
 um que as sinapses do cérebro falharem.
 
 Outras pessoas poderão enxergar diversos fragmentos da 
 
 vida e da pessoa de Paulo, mas raramente alguém 
 
 conseguirá reunir, em um único olhar, tantas “partes”
 
 dele como seus pais conseguem.
 
 Aquele nedex sabe que algo parecido ocorre com ele. 
 
 Mas, quando tentou, não soube dizer o que é. Nem ela 
 
 não viu razões para acreditar em coisa alguma.
 
 Por questões óbvias, os nedex são poucos. É uma 
 
 espécie rara e em extinção.
 
 Em regra, são muito parecidos como o sujeito do diálogo 
 
 estéril, lá no início.
 
 Esse tipo, quando olha para a mulher, enxerga uma 
 
 pessoa completa por dentro e linda por fora, ainda que, 
 
 por ação do tempo, ela exiba sinais do cansaço da vida
 
 e das perdas pelo caminho. Ao olhar para ela, não enxerga 
 
 uma fotografia, mas uma riquíssima galeria, que pode
 
 começar na juventude. Cada quadro dessa galeria se
 
 diferencia do outro não pela data ou idade, mas pela
 
 emoção que guarda no eloquente silêncio de seus traços,
 
 tons, luzes, aromas, sombras e molduras.
 
 Aos olhos do nedex, todas as imagens da galeria são 
 
 peças de uma mixagem em que se combinam inúmeras 
 
 cenas, trilhas, falas e expressões. E só há um palco no 
 
 mundo onde a protagonista dessas cenas e histórias 
 
 permanece sempre viva e renovada a cada contato entre 
 
 os dois: na mente dele. Lá, sobrevivem imagens, sons e 
 
 ações das fases mais marcantes da amada. Lá estão seus 
 
 sussurros e soluços, suas juras e súplicas, cada batalha
 
 e toda luta, seu perdão e seus sorrisos,
 
 suas manifestações de ternura, celebrações
 
 mais vibrantes e momentos mais intensos, de alegria e 
 
 de dor.
 
 São visões que só ele detém. Nem amigos ou familiares 
 
 dela guardam esse acervo, porque não viveram as 
 
 criações românticas de sua porção feminina, que ela 
 
 teceu no convívio com ele, nem as cenas mais intensas
 
 desse lado de sua personalidade.
 
 - E por que só ele guardaria esses registros, se ela teve 
 
 outros romances e outras histórias? perguntará algum 
 
 observador frio e desencantado.
 
 Por uma razão muito simples. Foi ele o par romântico 
 
 da história central. Se não fosse, não seria um nedex, 
 
 mas apenas mais um desligado, desinteressado, 
 
 esquecido. Ou teria até relegado ao desprezo as poucas 
 
 lembranças que restassem.
 
 Amigos até podem ver uma boa parte dela, mas são 
 
 fragmentos forjados na relação social, profissional ou 
 
 recreativa. Nunca enxergarão tanto e tão profundamente
 
 quanto ele.
 
 Talvez ela continue não entendendo. Na verdade, jamais 
 
 entenderá. Mas dentro do nedex sempre haverá uma
 
 profunda e maravilhosa verdade.
 
 Seja ela musa ou muralha, só ele pode enxergá-la bem. 
 
 Não há ninguém que possa vê-la e entendê-la de forma mais completa do que ele.
 
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 * Nedex: Expressão cunhada pelo autor. Trata-se da 
 
 pessoa que "nunca esquece dessa ex" (ou desse ex).
 
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