Usina de Letras
Usina de Letras
140 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62340 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22543)

Discursos (3239)

Ensaios - (10410)

Erótico (13576)

Frases (50723)

Humor (20055)

Infantil (5475)

Infanto Juvenil (4794)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140849)

Redação (3314)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6222)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->ZUCKERNOY -- 17/04/2011 - 23:36 (MAURO DELLAL) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A manchete do jornal fez a cidade parar. Não havia quem não tivesse um exemplar nas mãos ou não se aglomerasse em frente às bancas de jornal para saber mais sobre o caso. Ganhara não só as manchetes, mas também os pensamentos e opiniões. Todos tinham o que falar a respeito; alguns, que julgaram antecipadamente, mostravam sua satisfação ou não, dependendo de seu posicionamento. Em cada bar, restaurante, rodas de cafezinho na folga do trabalho, o assunto era um só: o caso Zuckernoy.
“ZUCKERNOY: SENTENÇA INUSITADA”;
DEPOIS DE MESES DE DEBATE, O CASO ZUCKERNOY TEM FINAL INESPERADO”.
Todos os veículos da mídia, sem exceção, pararam suas prensas, deslocaram seus repórteres; televisões reviviam o caso a todo instante. As redes sociais ficaram entupidas de “posts” e comentários, uns contra, outros a favor. O país parou. Até no exterior o caso ganhou as primeiras páginas da mídia.
A sentença saíra de madrugada ainda. Nas tevês, os advogados de defesa, irritados, tentavam escapar do assédio enquanto os de acusação sorriam e davam longas entrevistas apesar do nítido cansaço. A pena fora decretada e não havia mais recursos. Zuckernoy estava com a data de sua morte marcada para dali a três meses. Estávamos em 25 de setembro.
A posição governamental insistia na ilegalidade da decisão. A pena capital não era prevista na carta magna. Achavam que mesmo com a crescente onda de violência no país, o que gerava uma pressão popular para a revisão do artigo que tratava dessa punição, a coisa era clara: inconstitucional. A igreja era, obviamente, contra a decisão. Embora Zcuckernoy não fosse católico – na verdade não possuía nenhuma religião – isso não era motivo para um posicionamento a favor. Era filho de deus, o homem. Por outro lado, a decisão do Tribunal máximo dera razão aos advogados de acusação. Entenderam todo o absurdo do caso e perceberam que estavam diante de algo tão claro, mas tão raro, que fugia de todas as amarras linguísticas e de sentido que constavam no papel que deveria nortear os rumos da nação. Todos eram ouvidos; todos falavam. Menos Zuckernoy. Estava tranquilo.
Mas o silêncio dele incomodava. Apenas nas sessões fechadas foi ouvido. Não se interessava em levar sua desgraça ao mundo e parecia não se importar com as consequências. Não foram poucos os que o chamaram de covarde, de fraco, de inconsequente por deixar filhos no mundo. Zuckernoy estava alheio a tudo isso. Tinha consciência do que fizera.
A pressão crescia contra a sentença. Não lhe foi possível escapar do cerco jornalístico. Afinal, é preciso vender jornais, revistas e informar a população. Diante de tanta insistência, já com seu destino marcado, resolveu falar. Exigiu transmissão ao vivo para evitar edições. Queria garantir que tudo seria dito sem nenhuma maquiagem. O encontro fora marcado em um lugar ermo para evitar aglomerações. Na verdade, era um furo de reportagem. Tudo aconteceu como ele pedira: uma única câmera, um jovem repórter, o cinegrafista, o diretor de reportagem e os advogados.
Quando o rapaz chegou, teve uma impressão bastante diferente do entrevistado; só o tinha visto em imagens e fotografias. Zuckernoy era um homem alto, com a pele muito pálida. Os cabelos ainda eram fartos e usava uma barba bem feita. Tinha os olhos fundos, mas que não desviavam o olhar, e se portava com uma elegância e altivez. O rapaz foi recebido com frieza, mas com educação. Nenhum agrado cerimonial, nenhuma preparação de alimentos ou bebidas. Nada que desconcentrasse o intuito da entrevista. Na verdade, Zuckernoy estava mais interessado nos resultados do que o jornalista. Cumprimentaram-se. Os dois tinham o aperto de mão forte, o que causou certo espanto ao repórter. Ele imaginou alguém sucumbido por uma desgraça inevitável, mesmo que essa desgraça tenha sido algo que poderia ser evitado.
Sentaram-se. Percebia-se uma certa tensão por parte da equipe de tevê: alguns fios mal conectados, talvez por essa ansiedade, causaram pequenos contratempos. A equipe inteira não se sentia à vontade. Zuckernoy apenas esperava sentado, fumando um cigarro. Finalmente, depois de muitas broncas, reclamações e desculpas sem sentido, tudo estava pronto. O diretor deu a ordem ao rapaz. A primeira pergunta rasgou o ar como uma faca afiada:
- Está consciente do que fez?
Zuckernoy o olhou ainda com frieza. Levemente acenou com a cabeça. O rapaz soube, então, que teria mais trabalho do que imaginava. Mas não se fez de rogado. Ajeitou-se em sua cadeira, inclinou o corpo à frente e, quase num sussurro, perguntou:
- Tem ideia de que o que fez é uma atentado à moral?
Desta vez Zuckernoy riu. Não um riso estridente; apenas uma expressão que deixava claro que a pergunta do jovem repórter era mais ingênua do que imaginara.
- E o que é moral? Perguntou. E antes que o rapaz respondesse, avisou:
- Tente ultrapassar as definições acadêmicas, meu amigo.
O rapaz agitou-se. Ele era mais pontiagudo do que tinha imaginado. Sem pensar muito, respondeu:
- Moral é um conjunto de...
- Regras que dirigem a ética do ser humano, interrompeu ele.
- Isso... quer dizer... afinal é o que dizem!
- Moral não é isso, rapaz!
- Não?
- Não!
E ficou esperando a nova revelação. Ela veio cortante.
- Moral não é um conjunto de regras. Moral é um dom.
- Como assim? Moral não pode ser ensinada?
- Zuckernoy entendeu que tinha o controle da situação e completou:
- Sim, não pode ser ensinada. Nasce-se com ela.
- Mas se nascemos com ela...
- Significaria que todos a temos, não?
- Exato! Mas não foi isso que você disse.
- Eu completo... Nascemos com ela, mas quem disse que não se pode tirá-la de nós?
- Como?
O jornalista cresceu na cadeira.
- Porque seres humanos não possuem mais algo importante: timidez!
O jovem deixou-se cair na poltrona. Estava mais confuso do que imaginaria estar. Como a timidez poderia ser algo bom? Como ela poderia elevar um ser humano? E como, por fim, alguém que se dizia tímido fizera o que fizera? Ele insistiu.
- Mas a timidez é um sintoma perverso que impede as pessoas de progredirem...
O diretor de filmagem olhou com cara de poucos amigos. A entrevista estava virando uma aula. Não era esse o intuito. A próxima pergunta tocou na ferida:
- Falemos sobre as mortes. Houve muitas.
- Sem dúvida!
- Não há nada em você que o faça se arrepender?
- Nada!
Frio, frio como uma pedra de gelo, Zuckernoy respondeu às perguntas, impassível.
- Então, as mortes não poderiam ser evitadas.
- Ah, sim, poderiam!
- E por que não foram?
- Porque não se pode deixar de matar quando falta a infelicidade.
- Em quem?
- Nos outros.
- Quer dizer então que as mortes foram provocadas por falta de infelicidade?
- Sim!
- Explique! As pessoas querem entender.
- Parece uma contradição, mas não me restou outro caminho.
Zuckernoy, pela primeira vez, ficou com o olhar longínquo. Parou por instantes; olhou ao redor. Todos estavam como que hipnotizados esperando suas revelações. Pareciam não respirar. Estavam em suspense. Ele baixou a cabeça e começou a falar:
- Seu diretor tentou dar mais dinamismo à entrevista quando o instruiu para mudar o assunto da timidez. Contudo, ela está diretamente ligada às mortes.
O rapaz nada disse. Sentiu que Zuckernoy começava realmente a se abrir. Apenas olhou-o paciente.
- Vivemos em um mundo pleno de coisas boas: há tecnologia, facilidades, muita diversão e trabalho, cultura e aprendizado. Digamos que seja um mundo equilibrado em que as pessoas têm diversidade de opções. Um mundo bom, um mundo beirando, talvez, à perfeição.
Para o jovem jornalista, o discurso de Zuckernoy pareceu contradizente. Ele percebeu a confusão e resolveu entrar direto no problema.
- Mas não é para todos!
- E o que a timidez tem a ver com isso, perguntou o rapaz.
- A timidez, algo de que nos expropriam, é a nossa condição essencial para que todos pudessem viver neste mundo. Sem ela, o que há é um ser humano altivo demais, individualista demais, com os dentes sempre prontos a rasgar e as mãos sempre prontas a apertar e os pés sempre prontos a pisar. Torna-se competitivo ao extremo. A timidez impede que haja autosuficiência, o que gera uma armadura, um guerreiro moderno. Sua luta é por territórios simbólicos.
- E a infelicidade?
- Ela apenas é um reflexo de algo que não existe na verdade, mas mascarada. A infelicidade, assim como a felicidade, não existe. Elas são fabricadas. Vive-se com cada uma delas. Uns tem a primeira como alvo; esses são os que guerreiam; os outros, têm apenas essa marca ruim, mas é ruim por uma convenção.
- Então, você morrerá porque lhe faltou felicidade?
- Não; eu vou morrer porque o que me mostraram teve efeito contrário. Considero-me inocente, conforme o Tribunal julgou.
A repercussão da entrevista foi enorme. Diversas pessoas se posicionaram a favor de Zuckernoy. Havia muitos como ele. E em um mundo em que minorias, que pareceram não tão pequenas assim devido aos inúmeros processos movidos nos três meses que antecederam sua morte, estavam em destaque, o caso Zuckernoy trouxe um pouco mais de justiça.
Na data marcada, a sentença foi cumprida. Condenado a matar Zuckernoy por afastá-lo da vida, por alijá-lo das condições necessárias para que pudesse progredir a contento, o governo o matou timidamente com uma injeção letal. Morreu sem dor física, mas no instante em que se despedia, lembrou-se de todas as suas mortes impostas em vida.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui