Parsifal, um funcionário público do executivo federal, chegava à Repartição invariavelmente às oito horas da manhã. Sentava-se e logo passava a dedilhar o teclado do computador, cujo monitor era posto de forma estratégica para que ninguém visse o que ele escrevia. Sabia-se que não era coisa do trabalho, pois sempre recebia muitas cobranças do chefe devido ao seu fraco desempenho.
Desconfiava-se que Parsifal passava a maior parte do tempo fazendo trabalhos da faculdade, pois resolvera voltar aos estudos.
Entendia da tudo. De capação de gato à física nuclear. Não era aquele sujeito chato, que devido a seus conhecimentos extraordinários sobre todas as coisas, queria se mostrar superior aos outros. Entretanto, nada na face da Terra ou do além era desconhecido dele. Todo assunto que se abordava, ele tinha sempre uma opinião, com ares de especialista. Para tudo tinha planos e soluções, só que não os punha em prática, ou por não querer ter trabalho ou por saber impraticáveis.
Depois que se separou da mulher, ficou arredio e mesmo tendo o casamento se desfeito há tempo, arranjou uma única namorada. Namoro que logo terminou, segundo ele, porque a mulher era doida. Moravam em cidades diferentes, separados um do outro por uns setecentos quilômetros.
Não sei quem era o doido. Mas certa vez a namorada foi visita-lo; chegou à cidade e ficou na rodoviária à espera de Parsifal. Depois de mais de duas horas ele aparece.
Na chegada foi logo explicando à namorada o que havia acontecido, tentando evitar uma briga. Ela fora para a rodoviária da cidade que Parsifal morava: Bodocó e ele foi busca-la em Ouricuri, onde trabalhava. Na pressa, como estava atrasado para encontrar a namorada, acabou batendo o carro. Além de aturar todos os desaforos dela, por conta da distração, ainda teve que arcar com a despesa do carro.
Parsifal era mesmo assim atabalhoado. Noutra oportunidade, a mesma namorada foi novamente passar uns dias com ele. Só que resolveu fazer uma surpresa a ele e pintou o cabelo de loiro. Parsifal chegou à rodoviária não a viu. Enquanto aguardava, uma loira de óculos escuro olhava insistentemente para ele. Com medo da namorada chegar e pega-lo paquerando, começou a disfarçar e olhar a loira. Passou várias vezes perto dela, sem a menor preocupação com a demora da namorada. Depois de muitas idas e vinda, a loira, olhou para ele e perguntou: “não está me reconhecendo não, abestado?” Era a própria namorada.
Depois disso, com sua mania de perseguição e com medo de pagar outra pensão, passou a evitar contatos com as mulheres, mesmo não sendo homossexual. Embora a pensão que pagava não tivesse qualquer influência em seu salário, pois o percentual retirado era igual ao acréscimo que ele tinha por tempo de serviço.
De formação militar. Fora das Forças Armadas, não sei de que arma e muito menos a patente. Não era, entretanto, aquele militar rígido. Cumpridor rigoroso de horários e de deveres.
Contador de histórias. Daquelas narradas pelo Forrest Gump. Coisas que ninguém acreditava. Não se sabe se o que ele contava, contava como verdade ou somente por falar. Pelo jeito de falar não deixava transparecer dúvidas. Mas como eram histórias tão mirabolantes, pelo menos, ele tinha uma certeza: as pessoas não acreditavam nelas. Mas assim mesmo as contava.
Contava, por exemplo, que mesmo sendo militar, durante o governo da Revolução, fizera campanha contra a ditadura, em plena Avenida Paulista, portando bandeira do Partido Comunista. Que fora preso, juntamente com o Lula em 1979. Tinha morado com o bispo Edir Macedo e fundado com ele a Igreja Universal do Reino de Deus. A Ana Paula Arósio ele tinha posto no colo. E muitas e muitas outras histórias.
Não tinha amigos. Acho que devido à desconfiança com as pessoas. Morava com uns colegas, mas não tinha qualquer amizade com eles. Limitavam-se às conversas de trabalho, pois quando chegavam em casa, todos se trancavam em seus respectivos quartos. Iam para a Repartição em carros separados. Nem mesmo freqüentavam os mesmos ambientes para refeição. Totalmente isolado da sociedade. Pouco bebia. Não freqüentava festas ou qualquer outro ambiente social. A não ser quando havia um convite muito insistente, ou mesmo uma ou outra confraternização, nas datas mais convencionais.
Nos feriados prolongados: carnaval. Semana Santa, não se sabe o que ele fazia. Os colegas de trabalho viajavam, deixando-o só. Portanto, nesse período não se tinha notícias dele. Ele não comentava o que fizera e tampouco se perguntava.
Os dois filhos viviam com a mãe. Não os via e nem falava com eles, nem mesmo por telefone. Segundo ele, a mãe os colocava contra o pai. E como eles não o procurava, ele também ficava na sua.
Devido a esses problemas, tinha suas paranoias e era um pouco depressivo.
Com uma boa voz. Grave e bem falante, sempre que atendia o telefone da Repartição, falava primeiro o nome da Repartição, depois o setor que trabalhava, finalmente se identificava, dando bom dia ou boa tarde. Algumas pessoas sempre que ligavam para a Repartição e não eram atendidas por ele, perguntavam pelo rapaz de voz de locutor.
Brincadeiras com ele eram inevitáveis, e Parsifall não se irritava, pelo menos aparentemente levava numa boa. Como sempre, em qualquer lugar do mundo há quem goste de uns e de outros não. Com Parsifal não era diferente.
Certa vez, resolveram mata-lo. Ou melhor, fazer uma brincadeira com outros colegas dando Parsifal como morto. Brincadeira de mau gosto, mas inofensiva, pois envolvia somente ele e os colegas da Repartição, porque ninguém da família tomaria conhecimento, até mesmo porque na Repartição não se sabia quem era sua família. Com foi dito, ele vivia isolado totalmente da ex-mulher e dos filhos. Tinham-se notícias somente do pai dele, um senhor já perto do noventa anos, que ele de vez em quando visitava e de um irmão meio maluco que morava com o pai de Parsifal. Afora isso, mais ninguém.
Pois bem, mataram o Parsifal.
Com a transferência dele para outra cidade, certo dia um colega chegou na Repartição dizendo que ele havia morrido. Ninguém acreditou, mas também não se preocupou em saber da verdade, ligando para a Repartição para onde Parsifal havia sido transferido. Aproveitando-se disso, o colega, que inventara a história, encontrou uma foto de Parsifal no computador e montou um santinho.
Esses santinhos que se distribui na missa de sétimo dia. Com a foto dele fez o tal santinho: Botou o símbolo do nascimento com a respectiva data, Fortaleza, 23/4/1954 e o de falecimento: Natal, 10/1/2005. No meio o nome do falecido: PARSIFAL PEREIRA DAS NEVES. E procedeu a distribuição.
O nome Parsifal foi em homenagem a um ex-governador do Ceará de quem o pai de Parsifal era correligionário. O Pereira por parte da mãe e das Neves, por parte de pai, que se dizia primo em primeiro grau do ex-governador de Minas e ex-presidente da República, Tancredo Neves.
Os colegas ao receber o santinho ficaram consternados e acreditaram na história. Entretanto, não tiveram o cuidado de checar na Repartição a veracidade do fato.
Passado algum tempo. A história foi esquecida, mas não desmentida. Eis que certo dia, Parsifal, muito cedo da manhã, no início do expediente, quando os funcionários estavam chegando para o trabalho, aparece na Repartição. Na portaria o guarda de plantão não o conhecia e como ele se identificou com a carteira funcional e dizendo que estava a trabalho entrou tranqüilamente e foi para o seu antigo setor aguardar a chegada dos demais colegas.
Um dos primeiros funcionários a chegar foi dona Maria do Rosário. Colega que havia trabalhado com Parsifal por muitos anos. Beata de rezar três terços por dia e assistir, pelo menos, a duas missas. Era que durante o mês de maio fazia a novena de Nossa Senhora na Repartição. Rezava e transportava a imagem da santa de setor em setor durante todo o mês. Dessa beata que além de temer a Deus, morre de medo de alma. Depois de seis horas da tarde não ficava só na Repartição nem por muito dinheiro.
Nesse dia, ela, que sempre chegava atrasada, foi a primeira a chegar. E deu de cara com o Parsifal, bem queimado do sol de Natal, sentado na sua antiga cadeira. O susto foi enorme. A coitada ficou trêmula, que as pernas não mexia, gaguejava e apontava para Parsifal sem dizer uma palavra. A tremedeira foi aumentando à medida que Parsifal caminhava ao encontro dela e falava.
Sem saber de nada, pois desconhecia a história da sua morte, Parsifal foi se aproximando da coitada, e ela tentando se afastar se agarrava cada vez mais a um escapulário que levava pendurado no pescoço, e apontava para Parsifal, que caminhava ao encontro dela sem entender aquele medo todo. Quando chegou perto da Maria do Rosário e a tocou, a coitada desmaiou. Caiu dura no chão e a catinga subiu.
Ainda sem entender, Parsifal saiu correndo pelo corredor da Repartição em busca de ajuda. Aí, o pior aconteceu. Ao chegar na portaria, foi justamente na hora que grande número de funcionários entrava para o trabalho. Na sua maioria pessoas tementes a Deus e crentes convictos. Pessoas que acreditam em alma, ao verem Parsifal, foi uma debandada geral. Todos saíram correndo, inclusive Paulo Veloso.
Paulo Veloso, na realidade, fora o causador de toda aquela confusão, pois inventara a morte de Parsifal. Na confusão, vendo os colegas correndo, esqueceu que Parsifal não morrera realmente e foi no embalo.
Parsifal ficou na Repartição praticamente só, na companhia da Maria do Rosário e do guarda da portaria que não correu por não conhecer a história. E foi justamente o guarda quem salvou, vamos dizer assim, Maria do Rosário. Ligou para o SAMU que depois de longas quatro horas apareceu na Repartição para socorrer a coitada. Parsifal, fazendo guarda, ficou à espera do socorro e como já disse sem entender nada, pois nenhum colega apareceu mais naquele dia na Repartição para trabalhar. E somente voltaram no dia seguinte, na companhia de padre Ambrósio, um exorcista da região.
Ao chegar à Repartição padre Ambrósio dá de cara com Parsifal. Já ia começar seu ritual de exorcismo, invocando as forças do bem contra o mal, quando chegou Paulo Veloso, meio sem jeito, para explicar a brincadeira e convencer os colegas que Parsifal não estava morto fora somente uma brincadeira de mau gosto não desmentida.
As explicações foram dadas e o caso resolvido. Entretanto, Maria do Rosário nunca mais foi a mesma, teve alta médica, mas foi direto hospitalizada num asilo de loucos, onde permanece até hoje, contando para os colegas de infortúnio a experiência que tivera com uma alma.