Não, ele não era nada. Nada que pudesse sentir naquele momento como parte de si. Não era corpo. Não era material. Apenas uma consciência sem memória que não podia ver nem ouvir, mas que sabia que era um réu e esperava. O tempo não existia e por isso não poderia dizer o quanto durou a espera. Muito do que sabia estava para além de palavras e de conhecimento material. O veredicto chegou em forma de palavras não ouvidas, mas compreendidas, e elas diziam: você está condenado a 94 anos à mercê de seus sentidos.
Então caiu. A queda foi longa e vertiginosa, e quando aterrissou em algum lugar sem luz começou a deslizar suavemente e teve consciência de que era um ovo, matéria em estado de tensão. Então sentiu e sentiu medo. Não conseguia saber de si, nenhum movimento voluntário. Apenas era e estava uma matéria-medo deslizando sobre as paredes de uma trompa.
Então começou a Dor. Tanta e tanta dor que seus gritos ultrapassariam todas as distâncias imagináveis se tivesse a felicidade de poder gritar. Mas não podia fazer nada além de doer, nem mesmo perder a consciência. Não sabia como dormir. O deslizar parou e a Dor que ele era fixou-se em algum ponto do útero em que chegara. Tanta e tanta dor acontecia que acreditava impossível de suportar. Sentia-se todo rasgando em pedaços e não sabia o que era nem em pedaços de que se rasgava. Então a Dor parava por algum tempo. O tempo parecia começar a existir e era muito lento. Depois a Dor acontecia de novo e ele não conseguia nem sequer desejar morrer porque não sabia como atingir a morte. Durou muito. Durou mais que o desejo de que pudesse acabar. E então parou sem aviso e tudo ficou calmo, escuro e quente. Agora estou na prisão onde ficarei algum tempo, pensou ele e se perguntou como faria para marcar o tempo que teria que suportar. Ao menos não tinha mais a Dor, era quase como voltar a ser nada.
Muito aos poucos foi sentindo e sentiu que tinha movimentos, débeis movimentos que muito devagar iam ganhando firmeza e consciência. Chegou um momento em que ouviu e então para sempre a paz acabou. Ouviu um bater ritmado e não o pôde mais deixar de ouvir. Todo o tempo e a cada minuto, cada vez mais alto e sem trégua o pulsar tão próximo e que parecia ao mesmo tempo vir de outro mundo. Era o coração de sua mãe. O que era ela? O que era ele? Se tivesse como marcar o tempo poderia estimar. Nove meses, gente. Menos, algum animal pequeno, gato, cachorro talvez. Mais, animal grande, elefante? O que era? O que seria?
Não, animal pequeno não era. A voz o condenara a 94 anos, um gato ou um cachorro não vive tanto tempo... a não ser que tivesse que passar pelo nascer-morrer várias vezes até completar os 94 anos. Não sabia. Não havia como saber. Só podia pensar e nem sequer havia muito para pensar. Somente perguntas sem respostas que se fazia interminavelmente. O tempo foi trazendo algumas respostas duvidosas. Conclusões a que chegava com base em uma ou outra dedução que lhe parecia lógica, mas que não era definitiva. Por exemplo, concluiu que era gente porque lhe pareceu sentir que possuía quatro membros e que os anteriores eram mais ágeis e sensíveis que os posteriores. Mas lembrava que, pelo pouco que sabia sobre animais, os macacos também têm os membros anteriores mais ágeis e sensíveis que os posteriores. Pelo menos algumas espécies de macacos. E também o canguru. Concluiu novamente que era gente porque lhe pareceu ouvir um som um pouco mais próximo que lhe soou semelhante a uma risada. Mas hiena também ria, não ria? Isso tudo o irritava muito, dava-lhe tanta raiva que sentia vontade de chutar as paredes, e chutava, porém sem forças, ainda era muito fraco e seus movimentos eram tolhidos pelo espaço que ocupava, pelo líquido no qual estava mergulhado. Sentia raiva por não saber muito sobre animais, por não saber muito sobre os homens, por não ter conhecimento de pequenas coisas que o ajudariam a ter certeza do que era. Que animal o tinha dentro da barriga e que animal seria ele quando saísse dali?
De repente concluiu. Só poderia ser homem. Pois como é que não pensara nisso antes, é claro que seria homem. A voz não disse que estaria à mercê de seus sentimentos durante 94 anos? Isso só pode ser uma condenação e só se é condenado por um crime que se cometeu, qual foi seu crime? Foi não mostrar sentimentos enquanto foi homem, portanto, agora só poderia voltar como homem novamente para, dessa vez, ter sentimentos, lógico, óbvio, só pode ser isso!
Ficou feliz com a certeza de que seria homem novamente, por pior que fosse seria gente e ser gente não pode ser tão ruim assim. Que alívio! Agora começou a acompanhar com interesse o próprio desenvolvimento, achou-se ridículo chupando o dedo mas não conseguia evitar e ao menos sabia com mais certeza ainda que era um homem. Tinha dedo e o chupava no ventre da mãe. Pelo menos achou que outros animais não faziam esse gesto. Estava chegando a hora e tinha muita pressa de sair dali e poder dormir sem ouvir esse barulho infernal nos ouvidos o tempo todo. Achou que é por causa desse barulho que algumas pessoas não conseguem resistir e acabam nascendo loucas ou se tornando loucas depois. Demorou, demorou muito e se sentiu muito apertado naquele espaço que antes era bem grande para ele, em certa altura da gestação achou que não cabia mais e que se crescesse mais um milímetro estouraria essa barriga dentro da qual estava. Mas chegou o dia, ou noite, em que tudo começou a se mover como em um terremoto, começou a ser espremido, empurrado e amassado por todos os lados, se tivesse alguma noção do lugar onde era a saída bem que procuraria ajudar, mas não tinha a mínima idéia de pra cima ou pra baixo dentro daquela bola. Deixou-se empurrar e pressionar pacificamente, dor pior do que aquela que já sentira não poderia ter nesse processo, nem, com certeza, o corte do cordão umbilical. Doeu muito a luz nos olhos logo que se viu com a cabeça para fora, doeu muito o corte do cordão, como previra, doeu mais ainda o ar entrando nos pulmões pela primeira vez, mas ao menos dessa vez pôde gritar! Ah, como era bom poder gritar e gritar bem alto, o primeiro prazer da vida, disso não tinha a menor idéia até agora, é poder gritar quando se sente dor. Como não se lembrava disso do seu primeiro nascimento? Não lembrava do seu primeiro nascimento.
Alguém o limpou por dentro e lavou-o com água morna, depois foi embrulhado em tecido que achou extremamente áspero e carregado pelo alto. Sabia que estava sendo levado no colo por alguma mulher que ajudara no parto mas a sensação era de que voava sem controle da direção, sentia vertigem e náusea. Felizmente pôde vomitar e sua boca foi limpa rapidamente e logo depois o pousaram em algo mais firme e o balanço de vôo parou. Algo muito grande e muito escuro aproximou-se de sua boca e sem poder pensar no que fazia abocanhou aquilo e sugou aquele leite horrível que não podia deixar de sugar por mais que quisesse parar e pedir um alimento menos asqueroso.