Banho sagrado.
No estúdio da TV Líder, Fofão dava a última empoada
no nariz.
Gargarejou meio copo de água com sal, cuspiu e disparou:
“hoje é dia de ferro no boneco !”.
E com o dedo na cara do diretor de produção, arrematou:
“Pode escrever. Vamos cravar um 39”.
Na mesma hora, Gagá, no camarim do Canal 2, repassa
o script pela última vez, dá um falso soco no estomago de
um assistente e solta o grito:
“Morte ao Gordo ! Temos dinamite na manga e vamos
detonar !”
São 16 horas.
Simultâneamente, as duas emissoras colocam o sinal no ar.
Após a primeira rodada de comerciais, Fofão vai ao ataque:
professor é flagrado por câmera oculta assediando inocente
aluninha de 14 anos.
Entram cenas de polícia invadindo a escola, alunos de cara
assustada, professor algemado é levado e jogado num
camburão, alguns gritos de “lincha!”.
“Onde bateu ?”, pergunta Fofão.
“25 e agora caindo”, vem a resposta.
Alegria geral na número 1:
25 por cento de audiência é quase recorde no horário.
Cada ponto percentual significa 80 mil telespectadores, o
que significa que 2 milhões de pessoas ficaram de olho
na façanha do gordo.
Ligado no relojinho de audiência, é a vez de Gagá
comandar:
“Gordo sacana. Agora vai ter. Manda um Exocet. Vamos de
maconha no convento”.
Escabroso é pouco.
O vídeo mostra um jardineiro podando roseiras no jardim
de um convento.
A madre passa e dá os parabéns pelo belo trabalho.
Logo em seguida passam duas freirinhas sorridentes, e
agora é a vez de o jardineiro passar uma coisinha:
um pacotinho não se sabe do quê, mas os olhares furtivos
e as risadinhas deixavam fácil adivinhar.
Corta para:
Delegado desce de perua na porta do convento. Três
policiais vão correndo para a porta.
Corta para:
Delegado, vários policiais e jornalistas dentro de uma sala.
Chega a madre tapando o rosto para protegê-lo da luz do
cinegrafista.
Tumulto generalizado, ninguém se entende.
Em off entra a voz de Gagá explicando o que aconteceu:
“há 3 meses o Canal 2 ficou sabendo que no convento
rolava droga. Uma equipe foi designada para gravar as
provas, e num esforço de prestação de serviço público,
aqui estão as evidências. Nem Deus salvará essas freiras
agora”!
As imagens do bafafá ainda estão no ar quando um
assistente, eufórico, passa o recado para Gagá:
“deu 28, 29 e agora bateu no 30 !”
“Pau no Gordo!”, grita Gagá, “metemos 30 quando a
freirinha confessou. 30, putada, 30 !”
Na Número 1 foi um baldão de água fria.
Entraram no ar as babaquices de sempre, com as manjadas
e descoordenadas dançarinas dominicais.
Correm os comerciais, e o Gordo avisa:
“Guerra é guerra. Bota o goleiro viado, e bota flagrante do
delito”.
“Vai baixar o nível, Fofo ?”, pergunta o braço direito,
“quem segura depois ?”
“Baixa o nível, mas sobe a audiência. Manda ver !” ordena
o gordo.
Câmera dá um falso ar de realismo ao flagrante, o goleiro
é nível de seleção, gente correndo pelo vestiário, porrada na
lente da câmera, depoimentos de colegas incógnitos atrás de
uma cortina preta.
Fofão tinha razão.
O sacrossanto relojinho de audiência trabalhou como
nunca, chegou nos 30, deu mais uma tremida e bateu no 32.
Alegria geral na Líder.
Ferretis no boniquétis.
Enquanto Fofão repetia que “o boneco se ferrou, o boneco se
ferrou !”, o mega anunciante dos chocolates ligou para dar
os parabéns:
“É isso aí, Fofão. Quebra a cara dele. Quase 2 milhões e
seiscentas mil pessoas assistindo, já pensou ?”
Uma nuvem de pessimismo baixa no Canal 2.
Reunião de cúpula no switch room para achar uma saída.
Todo mundo dá palpite.
Gagá lentamente olha para cima e decreta, baixinho:
“vai ser a mãe”.
Silencio geral.
O diretor de produção se assusta:
“é demais, Gagá. Vão fechar a estação”.
Mas quisessem ou não quisessem, a digníssima mãe do
presidente vira a estrela do próximo bloco.
Madame é mostrada na feira livre, no meio das barracas,
cinegrafista oculto vai registrando tudo.
Até parece horário eleitoral, vão mostrando a simplicidade
da velha senhora, sua cordialidade com os do andar de
baixo, a ausência de seguranças, o contato com os feirantes,
uma aula de democracia.
No último fotograma o trem descarrila.
A mamãe do presidente se irrita ao pechinchar o preço
de um maço de cenoura, diz que não está aí para ser
roubada, e recebe de volta uma resposta em 80 decibéis
que faz a feira inteira parar:
“E a senhora que vá para a puta que o pariu !”
O cinegrafista oculto captou rostos assustados, gente que
se virou para olhar o que aconteceu, frutas caindo das
sacolas.
Foi um Deus nos Acuda também no Canal Viva.
Telefones tocando, Gagá gritando que não atenderia
ninguém – “nem que fosse o filho da velhinha”.
Um assistente passa para Gagá um papelzinho com um
número: 36.
Gagá acende um cigarro, joga a fumaça para cima e
sentencia:
“foi nocaute. O Gordo teve o que merecia. 36 é para não
mexer mais comigo.”
O horário da tarde vai terminando, só falta a última
entrada do Fofão.
Que por sinal está lívido e paralisado.
Chama a equipe:
“Vai ser o ...”.
“Tudo menos esse, Fofão”, pede um dos assistentes.
“Isso é sério, Fofão, não dá para brincar”, diz outro.
“Pelo amor de Deus, não, Fofão”, implora mais outro.
Mas Fofão, indiferente aos apelos, termina a frase:
“...o Papa !”
Nesse dia glorioso e inesquecível, o programa do Fofão
na TV Líder atingiu incríveis 46% de audiência.
Quase 3 milhões e setecentos mil espectadores grudados
na tela, recorde nacional, recorde sulamericano.
E recorde de telefonemas.
Um deles, do Vaticano.
Era do Primeiro Secretário de Sua Santidade.
Excomungando o dono da TV, a diretoria inteira, e mais
Fofão e seus 11 assistentes.
Ah, e também “o infeliz e infiel paparazzi que passou para
vocês a cena de Sua Santidade saindo do banho”...
|
