Estou saindo de Brasília rumo ao interior do Rio Grande do Norte. Vou conhecer pequenas comunidades que, com um empurrão discreto e inteligente, conseguiram passar da extrema pobreza ao desenvolvimento sustentado. Estou escalado para redigir matéria sobre o tema e sinto-me animado para a missão, pois acredito no poder de multiplicação daquele projeto promissor.
Ao embarcar, percebo um misto de animação e inquietação entre os presentes. O avião nem decolou e os passageiros parecem excitados, alguns sussurram com os vizinhos de poltrona. Só mais tarde fico sabendo o motivo. Nada parecido com a minha empolgação pelas comunidades carentes que buscam um lugar ao sol, mas com um grupo de homens ávidos por um lugar perto da estrela. E põe estrela nisso! Primeira grandeza, dessas que não passam despercebidas com seu indisfarçável rostinho das capas de revistas e todo o resto já contemplado nas páginas internas.
A conexão em Salvador é confusa e demorada. Por conta do atraso, a companhia aérea oferece jantar àqueles que continuarão a viagem. Lá se vão, esfomeados, para o restaurante. Não gosto do alvoroço e dispenso o jantar.
Cansado de andar de um lado para outro, vou para a sala de espera, que está deserta como o céu escuro da madrugada. Ou melhor, quase.
Bela e só, lá está a moça das revistas, também indiferente ao jantar baiano. Aliás, indiferente a tudo, dissimulada atrás de enormes óculos escuros. Circulo pela sala para conferir. Então, percebo que ela leva os óculos à testa e olha fixamente para algum ponto no canto em que estou. Discretamente, inspeciono à minha volta para descobrir o alvo de sua observação, mas nada vejo de especial.
Resolvida a conexão, todos embarcam novamente, agora com muitos lugares vazios, porque boa parte dos passageiros fica em Salvador.
Acabo de me acomodar na poltrona quando novamente avisto a musa entrando. Esbanja charme e desfila devagar. Observa as poltronas, confere à esquerda, à direita e à frente. E segue pelo corredor, como se estivesse em dúvida sobre aonde ir. Do ângulo em que estou, tenho a impressão de que um meteoro está crescendo em direção à minha testa. Como cena de filme, o imenso cometa com cauda e tudo vem pousar ali, na poltrona entre mim e a janela, envolvendo-me numa intensa atmosfera de calor, brilho e efeitos especiais.
Assim tão de perto, não deixa dúvida. De fato, faz jus à fama, ao mito e ao clamor dos solitários em êxtase. Perdido nessas reflexões, quase não percebo seu sussurro pedindo que eu feche a persiana. Curvo-me para alcançar a janela e me vejo ainda mais perto do cometa, que me ofusca a visão e aquece a imaginação.
Àquelas horas da cansativa madrugada, eu admitiria que estivesse semiconsciente, quase sonhando, não fosse tão viva a movimentação a bordo. Gracejos, pedidos de autógrafos e a tripulação inquieta. Temo que o piloto automático também abandonará seu posto para se exibir no corredor.
Quando se tem um avião dentro do outro, tudo pode acontecer.
De repente, não se de onde, aparece um passageiro:
-- Com licença, a senhorita está ocupando a minha poltrona.
Ela faz que não ouve e eu finjo que não me irrito com a intervenção.
Mas compreendo imediatamente as razões do reclamante.
A moça ocupa a poltrona errada, o que me parece certíssimo.
E invento algo para justificar:
-- Olhe, gente boa, ela tá cansada, com enxaqueca, tentando dormir nesse cantinho. Vai agradecer se você concordar com os lugares trocados.
O sujeito enrola um pouco, esperando demonstrações de simpatia dela, mas desiste e se afasta.
Ela age como se estivesse em sua casa. Segura, serena e mostrando profundo bem-estar.
É contagiante a simpatia com que corresponde à minha sondagem:
- Sim, estou viajando sozinha. Vou a um evento particular na casa de amigos.
Então, novamente com aquele olhar de muitos códigos e nenhum limite, acrescenta:
-- Mas antes de seguir, me hospedo hoje em Natal, para descansar um pouco...
Eu arrisco:
-- Eu também. Fico esta noite em Natal e amanhã vou para o interior, a serviço. Você conhece algum hotel bom em Natal?
-- Minha reserva é num hotel legal. Por que você não fica lá?...
Procura numa bolsa de mão um cartão com o nome do hotel e me entrega.
A viagem segue, assim como alguns sinais subliminares e outros nem tanto.
Tudo parece caminhar às mil maravilhas, exceto por um detalhe: contrariando minha experiência, meu desejo e as expectativas de todo bom roteirista, sinto que me fecho à medida que ela se abre.
Volto a fita para ver se algo faz sentido.
Enquanto vou revendo mentalmente o que se passou desde o início da viagem, sinto o avião ganhar mais uns 4 mil pés. Algo diz que minha perplexidade está próxima do limite, acompanhada da mesma sensação de alguém que se vê indicado para o Oscar da Academia de Cinema sem jamais ter passado do teatrinho amador no colégio.
Vem um leve calafrio, seguido do pressentimento de que o avião tomou o rumo da Lua.
Confiro o semblante dos demais passageiros. Tudo parece em perfeita normalidade.
Para mim, nada mais está normal. Além disso, os diálogos com ela, que seriam um perfeito quebra-gelo, serviram para instalar um iceberg sob meu assento.
Capturar ou ser capturado? A voz passiva pode mudar tudo e a diferença entre o infinitivo e o particípio pode ser como a transição do sedativo ao precipício.
Nunca notara que um mesmo verbo pudesse servir a significados tão opostos.
Meus pensamentos abandonam a inútil gramática e correm para a psicologia. Resgato fragmentos das explicações de um velho psicólogo sobre a síndrome da aproximação estratégica, com suas etapas distintas e sucessivas, algo como preparação, tensão, ação, reação e descontração... Não estou vislumbrando a última etapa.
Finalmente vejo que não estamos a caminho da Lua, pois o avião mergulha na bela manhã potiguar, clara e ensolarada, pousando em Natal.
Carrego a bagagem de mão da diva até a sala de desembarque, onde algumas pessoas a esperam. Passo a mochila para outras mãos e sigo para o sanitário.
Respiro fundo, encaro-me no espelho e me transponho para um divã imaginário:
-- Doutor, nem sei ao certo se eu deveria esperar por loteria ou zombaria, mas desde já estou desertando. Ridículo, eu sei. Mas é preciso entender que em situações como essa, numa despretensiosa poltrona onde um cometa incandescente cai sem avisos nem rodeios, a tal síndrome da aproximação pode atropelar não só a teoria como também a fisiologia. Ser colhido de surpresa para uma suposta aventura de dimensão sideral e transcedental já nas próximas horas é uma proposta absolutamente sobre-humana. Isso exigiria preparação psicológica, fisiológica e emocional durante dias ou semanas. Sem essa preparação, eu não entraria em campo para um jogo como esse, comparável a Copa do Mundo. Sinto muito, lamentarei por toda a vida...