Quinta-feira de sol. Peguei a arma de fogo prateada, calibre 38, automática, dez tiros mais dois. Um exagero de arma. Só precisava ir até o quintal e matar doze passarinhos. Não mais do que isso. No máximo doze: aves e balas. O local era deserto e seguro, há milhas de qualquer moradia. Tudo pronto e planejado.
Antes de sair, vi a carta amarela na prateleira e guardei-a no bolso, o pequeno bolso da camisa. A carta lembrava minha missão. Carreguei-a como quem carrega uma identidade de soldado. Já não sabia se tinha gostado de receber o convite. Diretora! Só sabia que não exerceria o cargo de forma burocrática, distante, ausente. Não, isso não.
Eu, Flora, doce e meiga, iria matar passarinhos. Precisava fazê-lo. Lembrei-me de minha hipocrisia, como a justificar minha maldade: Carnívora! Devoradora que nunca abatera um bicho sequer, uma galinha, um porquinho, mas carnívora. Bife, churrasco, empada com recheio de picadinho, pastel de presunto, pizza com frango e catupiry... Ia ao mercado e comprava a carne plastificada, lisa e vermelha, sem sombra do sofrimento animal, o que agonizara.
Abri a porta e atravessei o quintal. Rumei para o campo, adentrei pela grama alta, que se estendia a perder de vista. Usava botas forradas, também um casaco de couro, e luvas, que me garantiam a firmeza enquanto segurava a arma fria.
Posicionei-me ao lado de um pé de erva-mate. Achei graça, não é que escolhera justo um pé de planta com nome de “mate”! Mate! A ordem imperativa soando... Deitei-me no capim, segurei a arma e apontei o cano para o céu. Que tipo de ave cruzaria o céu? O céu que estava tão límpido e azul. O céu manchado de sangue.
Chegara a hora, então era assim? Fechei um olho e preparei a mira. Persegui um alvo imaginário. Um pato? Pato, não! Ora, comecei a rir de minha tolice, porque não um pato? Que diferença haveria entre matar um pato ou matar um Sabiá? Que fosse um pato! Ademais, um calibre 38 era mais digno de um pato! Resolvi reler a carta antes de cumprir minha missão: o rito sumário, o sacramento a ser lido e relido:
“Prezada Doutora Flora A. Donner, é com imensa alegria que lhe participamos o convite para compor nossa diretoria. Muito nos honra contar com sua presença qual diretora desta casa. É na esperança de vê-la trabalhando conosco que aguardamos sua manifestação o mais breve possível.”
Contavam comigo. Mirei o céu sob o cano da arma. Viesse o que viesse eu mataria. Um cisne de pescoço preto. Não, um cisne de pescoço preto está em extinção! Meu Deus, um cisne não! Apertei o gatilho: um estampido seco ecoou. A grande ave chacoalhou no ar por uns instantes e depois apontou numa queda vertiginosa, rodopiando o que parecia um fragmento de asa trêmula, um desespero em respirar. Tombou no chão feito um saco. Corri ansiosamente, cortando o capinzal, até onde se encontrava. E vi a criatura. Rombo no meio do corpo, sangue escuro espalhado, débil bater de asas que ainda queriam alçar vôo, peito arquejante. Mais um pouco e os olhos ficaram pardos e as pernas esticaram-se.
Pronto, se fora uma vida preciosa. Acariciei o bico do animal, a curva longa do pescoço delicado, as penas sedosas. Resolvi voltar logo para casa. Um tiro fora disparado. Um tiro fora suficiente.
Entrei em casa e postei-me à mesa. Tirei a carta do bolso... “É na esperança de vê-la trabalhando conosco...” Peguei o telefone e disquei: Alo, aqui é a Doutora Flora. Eu vou assumir o cargo. Desliguei. Agora estava pronta para ser diretora. Meu olhar não era mais tão doce.