A indignação e a inveja se misturaram no olhar daquele menino de rua que foi à janela do carro importado pedir um trocado para comprar um pão. No vermelho do sinal à sombra do minhocão, a criança se vê esquálida com rosto meio sujo no reflexo do vidro que desce automaticamente fazendo aquele som robótico tão característicos dos filmes que ele nunca viu.
Fechou um pouco os olhos avermelhados para poder enxergar melhor o interior do carro tão luxuoso, e observou mais demoradamente o cachorro de laços vermelhos e pelo branco reluzente que dormia o sono dos príncipes no banco de couro preto. Ficou ali estático por uma fração de segundos estendendo a mão pequenina sem ter forças para dizer o que queria.
A senhora de nome imenso de família quatrocentona olhou-o com misericórdia indiscritível e colocou naquelas mãos uma nota que o garoto sequer pôde senti-la. A mulher reparou que o olhar fixo do garoto dormia sobre o cão que sonhava ao lado dela, e gentilmente acariciou-lhe o pelo para que acordasse e o garoto pudesse admirar o seu “filhote”.
Espreguiçando-se de maneira quase majestosa, o cão se levantou no banco e farejava o garoto que sonhava em poder usufruir dos restos que o cão provavelmente deixava em sua bela mansão. Num susto, o garoto deu um passo para trás e sorriu, à um latido estridente do filhote que queria brincar, e num instante, o verde refletiu em seu rosto e ele novamente olhou-se no reflexo robótico do vidro que subiu e foi embora.
Retornando à calçada onde dormiam outras crianças, ele ajeitou os jornais e papelões meio úmidos, que recobriam seus irmãos e pensou nos laços vermelhos do cão perfumado que dormia no banco de couro. Sentou-se desconsolado num canto escuro da coluna do viaduto e finalmente olhou a nota que a senhora imponente havia colocado em sua mão. Um sorriso tomou-lhe a face, e as lágrimas caíam-lhe pelo rosto encardido.
Renasce então a esperança naquela criança batalhadora que até então, iria contentar-se com as migalhas deixadas pelo cão. Atropelando-se entre os entulhos, ele correu até a padaria próxima e aos gritos comoveu os bêbados que se acumulavam no balcão:
“Tio, hoje meus seis irmãozinhos e minha mãe vão poder comer!”
Entreolharam-se os bêbados e silenciosamente brindaram ao “melhor amigo do homem”.