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Contos-->O gosto do nada -- 25/04/2005 - 02:30 (joão alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Va donc, sans autre ornement,
Parfum, perles, diamant,
Que ta maigre nudité,
O ma beauté!”



"Porque Deus fez as pessoas diferentes? Bastava ter criado um único ser perfeito e toda sua obra estaria justificada. A diversidade, o acumular defeitos, exigem uma complementação. A dualidade povoa nossa alma e essa relação atinge seu ponto máximo no impulso sexual, o mais primitivo e puro expediente do qual o homem pode lançar mão para atingir a verdade”.Eu falava e começava a ficar puto pra valer, queria correr, queria ter dois metros de altura e um corpo de pele blindada para poder distribuir cacetadas e sair ileso. Não adiantava bater em Clarissa, ela gostava e sempre pedia mais.


I


Caminhava dentro da noite fria, minha calça estava rasgada no joelho e o ar gelado subia até o saco aumentando a sensação de desolamento e solidão. Caminhava para ajudar minha vida a mudar. Não era a primeira vez que essas idéias de mudança me assaltavam e em nenhuma das outras eu havia conservado a inércia, então percebi que o que não mudava mesmo era a vontade de ser diferente, fugir da mediocridade. Tentei reduzir esse pensamento durante um bom tempo, o suficiente para cravar meus pés no chão e aceitar a desgraça e a felicidade com ânimo constante, com vontade morna. Quando era difícil controlar o produto dessas interações bioquímicas cerebrais eu atacava com algo mais forte, menos meditativo, me rendia à natureza animal e creditava uma origem molecular a todo meu enfado, nessas horas, como naquela noite, eu bebia até cair. Entrei num bar escuro com balcão de madeira. Um garçom sorriu com intimidade falsa e dentes destruídos pelo cigarro.
"Vais tomar o que, velho?”
"Bastante, tens dessa por aí?” Dentes amarelos.
"Claro patrão, diz o nome que a gente traz”.
"Vodka, copo americano, sem gelo, como água”.
O álcool lubrificava minhas articulações e de repente ficou fácil movimentar o corpo. Foi com essa disposição acrobática que coloquei os olhos em Clarissa pela primeira vez. Ela era de uma fluidez que parecia anular o efeito da gravidade sobre seu corpo, na pele glabra, transparente de branca, dos braços e pescoço várias tatuagens acentuavam o ar insólito. "Ah, minha mahori albina!" No meio daqueles tipos idiotas ela foi arrastada e depois de a perder de vista custava a crer na sua existência. Naquela madrugada Clarissa foi estupefaciente suficiente e eu voltei pra casa contaminado por um veneno que julgava sem antídoto e que me mataria com a recompensa de uma boa e tépida febre de moribundo.


II


Perdi muito tempo alisando as cadeiras daquele bar, manchando o balcão com fundos de copos e agüentando a cara chata do uruguaio dono do lugar, até encontrar minha mahori de novo. Demoraram quase dois meses, sessenta dias de beberagem recalcitrante. Quando ela apareceu eu já estava bêbado, mas ainda assim experimentei um desconcerto adolescente. Nada arrefeceria meu ânimo e seria Clarissa comigo ou a morte na madrugada.
Peguei um guardanapo e comecei a rabiscar, a maioria dos caras do bar era maior e mais forte, uma abordagem direta poderia me custar dois ou três dentes. Pensei, pensei, pensei, naquela época eu pensava muito. Escrevi:
"...olhei tanto para ti/ que vi meu rosto/ esticado na tua pupila/ e ele assim deformado/ num pedaço de ti/ parecia bem cuidado/ perdido de mim. Rui"
Bati nas costas do dentes destruídos e falei,
"Leva pra menina ali sentada e se ela perguntar quem mandou diz que fui eu”. Ele abriu o sorriso de siga com cuidado, deu uma volta por outras mesas e discretamente deixou o bilhete ao lado do copo de vinho que Clarissa entornava. Vi ela ler, sorrir e correr o olhar pelo bar, nesse momento virei a vodka. Levantei o copo quando fui alcançado por sua busca e ela apontou uma cadeira vazia.
“Então teu nome é Rui, gostei da poesia, já usaste quantas vezes?”
"Uma, mas se der certo vou usar mais algumas”.Ela riu, continuei,
"Qual teu nome?”
"Clarissa", ela falou o nome como quem diz o leão é o rei dos animais. "Poxa Rui, sempre te achei meio maluco, chegando sozinho, bebendo pra cacete e saindo sem falar nada".
"Como? Eu lembro de ter te visto só uma vez há algumas semanas".
"Não me espanta tu não lembrares muita coisa”.
Ela usava uma blusa colorida com pontos abertos, estava sem sutiã e eu podia ver, tendo de imaginar só um pouco, a forma dos seus seios.
"Bom Clarissa agora a gente se conhece de verdade"
"Nós conversamos dois minutos".
"Dois minutos que vão durar pra sempre".
“Papo louco, o que queres dizer?”
"Que foi um bom começo, meus dois minutos contigo são imutáveis e não me pertencem mais”.
"Tu estás dizendo que nossas lembranças não nos pertencem?”
"Isso, nós é que pertencemos..." Aproveitei o silêncio e nos beijamos de língua, a dela móvel como se possuísse um cérebro exclusivo e a minha meio estática porque eu pensava muito e pensamento demais atrapalha qualquer vida.
"Nós podíamos comprar bebida e esticar a noite na minha casa".
"Acho que não", fiquei quieto, ela falou rindo,
“Tenho vodka no meu apartamento igual a que tu tomas por aqui”.
Deitei no sofá de frente para um retrato do Van Gogh, estava tonto e preste a vomitar então respirei fundo e encarei a figura com a atadura na cabeça. Clarissa sentou colocando a perna sobre a minha, os olhos entreabertos numa faixa vermelha tornavam mais evidente sua íris azul, estava tonto e prestes a vomitar então encarei minha mahori de olhos azuis e pensei que se deus existisse não permitiria que eu vomitasse àquela hora. Deixei a mão escorregar pelo joelho glabro e resgatei uma sorte de sensações perdidas no limbo da infância, uma vida sem buracos, um respirar pelo prazer. Clarissa sem roupas era muito diferente e a mudança não ocorria do pescoço pra baixo e sim no rosto. Os ossos da face ficavam mais proeminentes, sua boca mais grossa. Sempre beijei de olhos abertos, as mulheres têm sua fragilidade tão explicitada na beijo, nos movimentos lânguidos. Clarissa explorava minha boca com a língua e era como se dissesse, "vê!?, por ti sou um bebê de novo, a ti entrego minha língua, contigo não preciso dos olhos abertos.”


III


"Clarissa, oitenta noites já passaram sobre nossas noites e em nenhuma dessas noites eu pude deixar de lembrar do teu rosto lívido. Como doeu meu amor ver-te assim, ruivos os cabelos, vermelhos como o fio de sangue que dividia teu pescoço. Eu estranhei o gosto de ferrugem no teu colo e quis, Clarissa, desaparecer contigo no último sopro que abandonou tua garganta".
As pessoas no trabalho riram da minha cara transtornada na manhã que seguiu nosso primeiro encontro. Todos concentrados em tarefas importantes, correndo com envelopes debaixo dos braços. Eu não podia parar de pensar em Clarissa e enquanto lutava contra o cansaço escrevia poemas de pornografia grossa em folhas de papel timbrado. Sede foi a palavra daquela manhã. Não importava se não me davam nenhuma função importante ou se meu chefe já tivesse se dado conta da minha beberagem desenfreada, afinal quem do maldito escritório conhecia os auspícios de Clarissa? Só eu sabia, sentia e os tinha visto. "Fodendo fomos de plástico/ Tu glabra, branca, clara/ livre de qualquer asco/ cama, santa ara...”.
Esperei até duas da tarde e a chamei ao telefone, disse que meus olhos estavam tão vermelhos quanto seus cabelos, rimos. Perguntei quando nos veríamos e ela respondeu que ficaria fora da cidade por dois dias. Estava muito excitada, falava das saudades dobradas que sentiria, mal me deu chance de falar. Clarissa era doida, eu gostava. Trancado sempre. No trabalho, na rua ou em casa. Preso com Clarissa dentro de mim e todos os meus sentidos voltados para o interior.
Quando deixei o prédio de escritórios, a noite já se insinuava com sombras no leste e o vento gelado criava fissuras nos meus lábios secos. No caminho de casa apanhei um calmante chileno, um solvente para Clarissa. Quem era ela? "Sobrevivi de lembranças por mais de quarenta horas, não entendi minhas motivações súbitas e foi difícil atinar com a solidão que tua ausência infligiu”.


IV

O dia que Clarissa voltou foi cheio de alegrias. Estava refeito das últimas semanas, acordei cedo e encurtei as horas ouvindo Billie Holyday e Chavela Vargas. Uma chuva torrencial ocultava qualquer vestígio azul no céu e dentro da minha casa o fog do cigarro aprofundava o inverno. Fui busca-lá no aeroporto sem saber qual vôo esperar, água em profusão lavava os vidros do carro. A visibilidade era mínima, mas a ansiedade me fazia guiar rápido. Ela telefonara na madrugada passada, com voz lânguida de timbre e riso doce. Foi breve e pediu que eu fosse pontual, seria bem recompensado, riso e voz de timbre doce, lugar preciso combinado. Nossas melhores conversas aconteciam durante as madrugadas. Cheguei com tempo suficiente para tomar um calmante escocês, fumegar um cigarro, folhear um volume de poesias e beber café. Lia decidido a não levantar os olhos do livro até sentir uma mão de toque suave e morno me chamar de volta à Terra
"Advinha quem chegou sozinha pra te tirar da solidão?”
"De onde vens?”
"Do céu..." Rimos, primeiro com as mãos separadas, depois de mãos unidas, então sorrimos e nos beijamos com violência, depois com calma, mordi seus lábios e passei a mão, mal tocando seu rosto, e ela encostou em mim o que podia ser encostado num aeroporto naquela hora. Minha casa era uma escolha lógica, Clarissa sussurrou que comigo estava sempre sozinha e nua, seus olhos pareciam os de uma pintura de Vermeer... o vinho circulava no sangue em redemoinhos e todo o pensamento acompanhava essa maré circular. Eu recalcitrava em perversões e vivia rituais de fertilidade, sabás, a guria tal qual uma bruxa vermelha, Lilith.
Soprava fumaça azul no dorso de vértebras salientes, nuvem sobre os traços abstratos e indígenas que cortavam suas costas em espinhos e elos góticos. "Quantos rostos nas tuas costas puseram nos meus os olhos? Qual deles eras tu e quais não eram?" Figuras flamejantes que me sangravam e escapavam voando. Dormimos muito juntos, acordei primeiro, abandonei a concha quente das pernas dela e acendi um baseado. Era estranho uma mulher voltar de viagem sem bagagem. Voltei para a cama depois de escovar os dentes até quase sangrar a gengiva. O sol entrava por uma fresta da janela e um fio de luz e poeira apontava para o meio da perna de Clarissa.
..."Tenho que trabalhar, te apanho pro almoço", disparei.
"Eu também vou sair, me dá um abraço”.Abriu os braços magros.
Nos víamos quase todos os dias, ela sempre escolhia os lugares. Eles nunca eram comuns, mas se repetiam de forma regular. Após três visitas a museus eu sabia que me chamaria até o porto. Nossos encontros eram freqüentes, mas em dois meses a tendência era se tornarem mais e mais furtivos. Clarissa sempre arranjava uma circunstância conveniente de desaparecimento. Era evasiva quando eu perguntava sobre sua vida, respondia com sorrisos sacanas e pedia para não insistir nos questionamentos. Eu, fascinado por aquela cintura, ainda espantado com a rigidez da sua carne, cedi. Todo o mistério me punha louco e excitava até os limites. Mas Clarissa era surpreendente e na madrugada, numa visita inesperada, mas sempre esperada, ela falou tudo.
Entrou no meu quarto usando jeans e camiseta branca colada à pele, sem mangas. Estava séria, trazia o cabelo preso à nuca, mas duas mechas finas e lisas caíam ao lado das orelhas muito pequenas. Eu acordei com aquela visão. Ficamos um tempo nos olhando sem dizer nada. Comecei a tirar sua roupa e ela fechou os olhos. Ficou assim até eu terminar. Beijei sua pele, conheci com a língua toda a extensão do seu corpo. Clarissa me fez deitar, procurou um encaixe em mim e eu tive certeza de ser impossível viver longe dela. Ainda ofegante disse ter algo pra contar.
..."Vou desaparecer por um tempo, não quero que te sintas preso".
Tentei manter a calma.
"Explica essa história direito, também não quero que te sintas presa, mas o que eu sinto é problema meu".
"Meus negócios não vão bem, não é problema de dinheiro. Devo algo muito mais sério e o cara quer cobrar tudo de uma vez”.
"Que cara? Que negócios, porra?”
"A gente leva vidas diferentes, de certa forma incompatíveis. É a verdade”.
Nunca pude com a idéia da verdade, filosofei.
"Porque deus fez as pessoas diferentes? Bastava ter criado um único ser perfeito e toda sua obra estaria justificada. A diversidade, o acumular defeitos, exigem uma complementação e essa relação atinge seu ponto máximo no impulso sexual, o mais primitivo e puro expediente que o homem pode lançar mão pra atingir a verdade. A verdade é meu pau, a verdade é o teu corpo". Apontei pra ela. "Gosto muito de ti caralho".
"Olha Rui, eu levo encomendas pra Espanha, escondo comigo, no meu corpo, material que não vai pelo correio. Conheci um cara há seis anos. A gente teve uma história, meti o figura no negócio e ele se deu mal logo na primeira viagem. Eu fui no mesmo dia mas em outro vôo e passei sossegada uma quantidade muito maior. Agora ele acha que eu denunciei a parte dele para poder atravessar a minha. Faz quinze dias que soltaram o cara. Ele foi deportado e vem atrás de mim, se nos encontra estamos fodidos".
Ela comia as unhas enquanto falava, mas notei um tom de orgulho na sua voz e isso me perturbou ainda mais.
"Vou contigo, não me importo, vamos os dois”.
"Tu não tá entendendo porra!? Eu quero ficar viva e não quero que nada de mal te aconteça."
Tudo em mim era semivida e tudo nela era antimorte. Peguei Clarissa por trás, suas belas pernas eram ainda mais belas quando se via a raiz das coxas. Só consegui fodê -la de quatro. Acordei sozinho.
..."Te amei mais quando conheci teus meandros de loucura, eras tão competente no papel de porra - louca que me fazias sentir idiota e ingênuo. Idiota por não poder estar separado de ti e ingênuo por achar que na vida existem mudanças para melhor".


V


"Clarissa que todas as metáforas do amor como é sentido no ocidente caíam sobre a tua cabeça. Não acreditei que desaparecerias, ainda não acredito que estejas tão longe. Voltei aos nossos lugares, na verdade não existem lugares que não sejam teus. Não concebo teu corpo de lascívia reptílea descansando na forma de um palito seco e me é impossível aceitar o apodrecimento da tua carne sem sofrer nas minhas várias mortes. Oitenta noites desde tua partida, oitenta longas noites nas quais eu esperei pelo milagre do teu retorno”.

Peregrinei por vias muito conhecidas, voltei aos bares, aprofundei minha tendência ao isolamento. O álcool virou uma razão, era o foco da minha vida, controlava as horas e anestesiava o pensamento. Não lembro de escovar os dentes nessa época. Aquelas semanas me transformaram para sempre na piada do trabalho, embora engraçado fosse eu continuar recebendo no final de cada mês. Queria ter recebido em vodka. Vodka na torneira. Os dias se arrastavam sem notícias de Clarissa e a diferença entre eles era percebida em detalhes sutis que demandavam muito esforço de memória para serem resgatados.
Ela estava morta, desespero.
Ela fugiu pra trepar com outro cara, raiva.
Ela tinha razão e corríamos perigo, dúvida.
Minha lógica de três pontas, consciência em três faces...
Depois de um mês estava decidido a testar a capacidade de adaptação humana e colocar minha vida, parcialmente, em ordem. Criei um ritual que começou em fazer a barba e procurar uma cueca limpa. Liguei o computador atrás da programação de cinema. Minha teoria era simples, bom sono, uma quebra na seqüência de bebedeiras e o relógio dentro de mim diferenciaria dias de noites novamente. Escolhi um filme francês do tipo autoral. Precisava dormir e confiei no efeito soporífero de uma película inteligente.
A sessão não era concorrida, dez, doze pessoas no máximo. Velhas de óculos, casais, um sujeito com aparência de halterofilista, careca, comendo pipocas e fazendo barulho. Tipo estranho num filme de expectadores franzinos. A idéia me veio num estalo. Não esqueço rostos, não esqueceria a cara feia que complementava seu estereótipo. Havia cruzado com ele em vários bares, em vários porres. Deixei a sala no meio da exibição, estava confuso e soterrado por paranóia. Ele me alcançou na fila dos táxis. Quase nunca me dou bem em confrontos, perco a calma, uma sensação de sonho me alcança. Essa chapação endógena sempre me fodeu.
"Vou te dar uma carona"
Olhei fundo nos olhos do cara, até aquele minuto a vontade de matar alguém nunca tinha me aparecido tão nítida. Tentei fugir, ele era rápido além de forte.
"Ou tu vais no banco da frente ou te coloco no porta -malas".
O filho da puta me deixou ver o cabo do que julguei ser um trinta e oito ou qualquer outro desses instrumentos associados a números e morte. O poder de matar expressado matematicamente. Cifras sempre me foderam, agora começaria a era dos calibres.
Entrei no carro
"Não adianta pensar em nada maluco, seu merda. Antes de abrires a boca eu te meto chumbo".
Clássico, eloqüente, eficiente.
Rodávamos em alta velocidade, o filho da puta berrava,
"A puta da Clarissa me meteu na maior roubada que eu já encarei. Fiquei queimado com meus caras, tomei no cu na mão dos gringos. Agora ela vai se dar muito mal e se tu souberes onde ela está e melhor abrir o bico. FALA PORRA”.
"Eu não sei de nada"
Clássico, pouco convincente, enfurecedor.
Apanhei muito depois de ele parar o carro. Tentei me defender, mas o cara era profissional e experiência e estudo são tudo na vida. Abandonei a idéia sobre abstinência, não havia atmosfera para ficar sóbrio. Noite após noite eu recebia telefonemas enlouquecedores,
"Duas balas, uma pra cada”.
"Vão morrer por amor, que lindo!”
"Amanhã te mato".
"Coloca teu melhor terno e faz a barba”.
Pensei, pensei, pensei. Era hora de pensar menos e comprar uma arma.
Trezentos gramas de ferro fundido. Nove vontades no carregador e um grande desejo na agulha. Dez anjos de nove milímetros de largura. Agora eu ria quando atendia as ligações. Muita raiva por detrás das risadas, raiva que incendeia pólvora.
Meu tempo de estrategista tinha chegado. Passei na locadora de filmes e escolhi os melhores títulos em disposições assassinas. Mortes dignas e honradas, mortes onde o cara se cagava como último ato. Assassinatos frios e calculados, crimes passionais. Seqüestros, tiroteios...Apreciei a ficção como prato de entrada.
Em todas as madrugadas o telefone tocava e eu sempre atendia na esperança de ser Clarissa. Definhava na ausência de notícias e mantinha a porta do quarto trancada.
Quatro noites sem telefonemas deixaram -me alerta, quase não dormia, qualquer ruído me punha de pé. Na última noite desse período eu desmaiei de cansaço. Minha mente estava fodida, não processava nada. A humanidade que ia em mim sufocada pelo animal. A porta da cozinha fez um barulho discreto, mas meu ouvido aguçado não ignoraria aquele som.
"Lembro da cama macia e do cheiro dos lençóis recém lavados. Acordei e peguei a pistola antes de piscar. Os passos no corredor eram leves, sorrateiros. Um silêncio de morte estufava meu cérebro. Pressão, muita pressão na mente”.
Puxei o ferrolho devagar e fiquei agachado ao lado da cama. Atirei só uma vez quando forçaram a fechadura, atirei na altura do peito. Levei meia hora, talvez mais, pra me mecher. Levantei aturdido, a velocidade da terra dobrada ou triplicada. Abri a porta como quem encontra uma câmara secreta, um cofre. Cinco segundos de hiperspaço.
Clarissa no chão, linda e imóvel. A imagem do seu rosto emoldurado pelo sangue me pôs imóvel para sempre.





Madrid, 05/2005
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