No início, conseguiu regularizar o sono, perdido nas madrugadas brancas de masturbações an-siosas, enquanto dividia a atenção entre a revista aberta sobre a cama e a fresta de baixo da porta, que dava para o corredor e desenhava a sombra do Padre, percorrendo e vigiando o corredor a noite toda. Depois do segundo dia de reclusão, as costas doíam e os olhos já tinham se acostumado à pouca luminosidade. O Catalégio era uma espécie de poço: paredes altas de pedras musgosas e chei-ros líqüidos; espaço exíguo, silêncio e escuridão; uma escuridão que lembrava o armário que o pai usava trancando-o para que o menino pensasse com calma nas besteiras que tinha feito, a ponto de acabar com a paciência de qualquer um, menino, será possível?, não posso virar as costas que você apronta! As paredes eram úmidas, o ar pesado, os cheiros de vida líqüida à volta cada vez mais inten-sos e os intestinos não funcionavam mais, por não terem o que expelir. Doía-lhe a barriga e a nuca; as juntas, quase inertes há dois dias, rangiam como dobradiças de velhos casarões ancestrais e o chei-ro de fezes e amônia tornou-se matéria comum naquele habitat compacto.
O padre o avisara. Ele o testou. O Catalégio era temido por todos como o pior dos castigos e ele resolveu testar o limiar, chegar à beira do precipício, deadline de outrem, fustigando a autoridade auto-proclamada. Masturbação sempre fôra proibida. Revistas daquela espécie, idem. Numa madru-gada sem lua e sem sono, de sonhos cor de carne e cheiros exóticos, despertou aceso, puxou a re-vista de baixo do colchão e iniciou a viagem de ida para os braços da loura sueca de pentelhos pre-tos. Embebido que estava, não percebeu a sombra, a aparição repentina, o clique do interruptor, a luz sendo acesa e refletindo no couché da revista, o berro, o safanão, o gosto de sangue na boca, o baque da cabeça no chão de tábuas do dormitório. Como conseguiu isso, menino?, consegui e pronto!, não vou dizer!, acho melhor falar, é para o seu próprio bem, não digo!, não deduro, não deduro, quem lhe vendeu esta coisa? Safanão. A "coisa" existia dentro de cada gota de hormônio de cada aluno do internato e o Padre não admitia o fato. A "coisa" podia se chamar desejo. Ou liberda-de.
De onde estava, conseguia ver uma nesga de céu, por onde, mal e mal, orientava seu sentido de tempo com o do mundo lá fora. No terceiro dia, já noite, alguém, provavelmente algum colega de classe se aproveitando da camuflagem da escuridão, abriu a portinhola do Catalégio e deixou cair uma barra de chocolate. Ele abriu feliz o pacote e sentiu com a ponta dos dedos trêmulos que a bar-ra de chocolate tinha quatro pequenos gomos. Separou a barra em quatro pedaços pois deixaria um para cada dia, já que não sabia quanto tempo ainda permaneceria ali, cativo. A bunda coçava. Dor na nuca. A sueca. Saudades.
O colégio era antigo e sua construção datava do final do século anterior: longas colunas enfi-leiradas pelo corredor comprido, terminando em arabescos e figuras de querubins, santos e imagens sacras, cativos - como ele - da alvenaria ancestral. Ele fôra deixado naquele colégio por seu pai, de-pois da morte da mãe. Claro, papai não teria tempo, ele é um homem ocupado demais, não conse-guiria lhe dar tudo o que teria no colégio, dizia Tia Olga, o Roberto é um homem justo e você faça o favor de não decepcionar seu pai, ele faz tudo por mim, não é, tia? E isso aconteceu há três anos. Três anos de internato e des-mundo.
A partir da quarta noite de cativeiro, tinha sonhos recorrentes com a sueca loura da revista. Mesmo limitados no claustro, os hormônios davam o ar de sua graça em poluções noturnas seguidas de desconforto líqüido de mais um componente sendo misturado à sopa de excrementos dele em que tinha se transformado o chão do Catalégio. Pentelhos pretos. Lembrava-se das meninas que via passar pela rua, menina de onze anos tem pentelho, Padre?, cala a boca, seu peste!, quando encosta-va-se na grade do internato na hora do intervalo entre as aulas; visão emoldurada pelas grades do internato: bundas redondas passeavam e, quando fizer quinze anos te levo pra zona, filho, promete, pai?, olhares curiosos e maliciosos colavam naquele menino do outro lado da grade, uma glândula viva, fica duro sempre que a gente fica pelado com a menina, Gustavo?, e eu sei, cara?, pois devia saber sim: é o mais velho da turma, ah cala a boca, um eterno exercício de espera, ânsia, segredos e medos. Até quando, meu deus, continuaria ali, cativo, naquele corpo cativo? Fez as contas: só tinha sobrado um gomo da barra de chocolate; portanto, estava ali há seis dias, só tendo a sede aplacada por sacos plásticos diários com um pouco d’água jogados sempre pela manhã pelo Padre.
A lourinha passava todo dia pela grade e via aquele menino de cabelos revoltos e olhos fun-dos, olheiras marcadas e boca vermelha. Olhavam-se em silêncio e davam-se até logo, levantando de pouco as sobrancelhas.
O menino encostava-se à grade e procurava por ela. Todo dia a esperava passar e via-se refle-tido nos olhos dela, mar do Caribe. Feito as fotografias que o pai trazia das viagens que fazia a tra-balho. Pentelhos pretos?, pai, o que quer saber filho?, menina loura tem pentelho preto?, as louras falsas têm, eu acho, nunca... fez com uma loura, pai?, nunca, com loura de verdade não, queria saber, pai, quando fôr à zona a gente escolhe uma lourinha de verdade para você, eu prometo.
A lembrança da sueca loura confundia-se com a lourinha da grade e, pentelhos pretos, sonha-va com as duas como uma roleta, sendo ele a búlica, objeto da sorte, sortilégio de si mesmo, pro-messa do pai, duvido que me leve na zona, o que ele vai explicar para o Padre?, ora, pai não precisa explicar essas coisas, e à noite pensava num mundo diferente; e neste mundo diferente só existiam mulheres e essas mulheres eram todas louras e essas louras todas tinham pentelhos louros, combina-va, achava ele: Deus não teria tido tanto mau gosto assim. O saco plástico com água jogado desper-tou-o para o sétimo dia na melhor parte do sonho, quando a porta do quarto se fechava e ele via a lourinha emoldurada por lençóis em desalinho. Sétimo dia, telegrafou-lhe o último gomo de choco-late, sorvido com pressa. No oitavo descansaria?
No oitavo ou nono dia, despertou do sono atemporal com uma luz que quase o cegou. Olhou em direção à portinhola mas não a viu. Acima dele havia uma figura fulgurante com um manto, ca-minhando sobre as paredes verticais do poço do Catalégio até ele. A figura abriu os braços. O meni-no sorriu e, pela primeira vez na vida, sentiu-se feliz. Viu no colo o decote transparecendo seios, seios, seios!, bicos empinados olhando para ele, as mãos eram as dela, a figura que se aproximava dele era ela, cascatas de cabelos louros encaracolados entravam por sua boca e olhos, o cheiro de sabonete, o cheiro de pele, de mulher, achava ele, o rubor que sentia na própria pele, o coração dis-parado acenando um final feliz, um final feliz, um final feliz. O cheiro de seus excrementos inexistia e o cheiro do mundo era o cheiro dela, o mundo que não seria mais des-mundo, e o mundo era ela e o Catalégio, agora alcova na cabeça do menino, engoliria para sempre o que restava nele de tesão, liberdade e adolescência. No Catalégio-alcova de seu sonho agora eterno, o menino felicitava-se. Feliz como quando no quente, no colo, mãe, cobertor, edredon, mornura, eternidade, pentelhos pretos, pentelhos pretos, pentelhos pretos...