TAL QUAL O CAMINHÃO DESGOVERNADO
(Por Domingos Oliveira Medeiros)
Tal qual o caminhão desgovernado que, no meio da madrugada, rodando pela estrada escura, em noite chuvosa, agravado pelo sono do motorista, que perdeu a direção e o fez tombar na pista; que, de pronto, ficou coberta de pacotes contendo produtos alimentícios - doces e salgados - que estavam sendo transportados na imensa carroceria daquele veículo mal tratado e mal conduzido.
Não demorou muito tempo, apesar da solidão daquela curva, e do adiantado da hora, para que filas imensas se formassem ao redor do caminhão, na busca de sua cota gratuita de alimentos. Tudo de graça: comida de primeira. Industrializada. Bem embalada. Em sacos e sacolas coloridos. Fechados a vácuo. Tudo em nome da segurança e da higiene alimentar. Livre de impostos. Coisa que há muito não se via por aquelas bandas, onde as pessoas estavam habituadas a se conformarem em comer o que pudessem retirar do seu próprio plantio: mandioca e milho - ainda com cheiro de terra -, e hortaliças e frutas, com suas embalagens naturais.
A fila crescia à cada minuto. A notícia do acidente, tudo indicava, parecia ter corrido depressa. A despeito do inusitado do acidente e do adiantado da hora.
Mas, ao contrário do que estamos acostumados a presenciar, não havia tumulto. Tudo caminhava com muita disciplina. A impressão era a de que aquela “gente” já estava bem acostumada a fatos semelhantes e rotineiros naquela época do ano; em que as chuvas são mais freqüentes, as noites mais escuras e as estradas, como sempre, esburacadas. Sem contar com a falta de manutenção dos veículos e o cansaço dos motoristas em função do excesso de horas trabalhadas para garantir maior rendimento salarial.
Pacientemente, um a um, todos retiravam a cota do alimento a que se julgava ser de direito líquido e certo. - Achado não é roubado, diziam alguns, alardeando a justificativa de seus atos ali praticados, ao largo das leis. E complementavam as argumentações a favor do saque com a idéia de que, além de achado, a questão envolvia o direito à vida, garantido por qualquer texto constitucional: o direito natural à uma alimentação para a própria sobrevivência.
Não demorou muito tempo para que tudo terminasse. Para que tudo voltasse ao seu normal. Abrindo espaços para que a madrugada escura retornasse à pista - agora sem nada para atrapalhar o trânsito – que, em poucas horas, voltaria à sua rotina com os primeiros raios de sol.
Foi desse jeito. Tal qual o caminhão. Não demorou muito tempo para que todo o besouro, que batera nas paredes e tombara dentro do quarto, naquela noite chuvosa, fosse carregado pelo exército de formigas, que não dispensaram sequer asas e pernas. Tudo foi aproveitado por aquela gente carente e com fome; agindo no pressuposto de buscar que lhe era devido.
Gente miúda, esquecida pelos governantes. Que nunca se deram ao trabalho de preocupar-se com eles; de saber de suas necessidades; de seus direitos; de sus virtudes; de eram pessoas honestas e trabalhadores; ordeiras e produtivas; sem medo de ser feliz. E talvez por isso, ou justamente por isso, por serem pequenas e indefesas, quase invisíveis no contexto social em sobreviviam – Deus sabe como -, eram quase sempre pisoteadas pelos bem calçados e bem vestidos, vale dizer, os detentores do poder político e econômico.
Mas, apesar da nua e crua realidade, não se pode deixar de registrar o belo exemplo de organização. Uma espécie de “programa fome-zero” bem executado, foi o que demonstraram todas elas: as formigas esfomeadas do campo; que realizaram, sem burocracia e sem algazarra, a distribuição de alimentos que lhe eram devidos, com competência, espírito de luta, ordem e disciplina. Um verdadeiro exercício de praticantes da cidadania.
Talvez porque, no caso em tela, não estava em jogo interesses políticos escusos. Ou, quem sabe, o prefeito daquela comunidade, dado ao adiantado da hora - bem agasalhado e distante do frio e das questões sociais -, curtia seu sono profundo, provavelmente sonhando com a sua reeleição ?